31 de dezembro de 2021

Tempo de Leitura: 3 minutos

Essa época do ano é, especialmente, difícil para mim. No entanto, quando criança, eu até gostava. Minha mãe era muito criativa ao se passar por Papai Noel. Apesar de nossa condição humilde. Meu pai, um militar da PMMG, também nos trazia presentes, oferecidos pela instituição. Mas autista é autista. Dessa maneira, meu hiperfoco era gente. Exatamente porque eu me sentia muito diferente. Com o passar do tempo, eu comecei a estranhar essa época do ano. Afinal, eu não sabia, ainda, que era uma autista lidando com as festas de fim de ano.

Ao completar 11 anos, eu não tinha mais direito aos presentes da PM. Lembro que sofri um baque. Como entender esse não, se eu me sentia a mesma criança? Foi quando comecei a observar as diferenças à minha volta. Nem todas as crianças ganhavam presentes. Alguns presentes eram mais legais que outros. Eu já não acreditava em Papai Noel. Então, deduzi que havia diferença entre o salário dos pais. A desigualdade dos natais se evidenciou para a menina que queria se sentir parte. Aliás, queria se sentir igual aos outros mas, a partir daí, a cada dia se sentia mais diferente.

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Eu, autista no fim de ano

Depois que passava o Natal, ainda tinha a o fim de ano. Nós só começamos a nos reunir com a família toda, já adolescentes. Nessa época, eu sentia como se houvesse uma mão apertando meu coração constantemente. E eu não conseguia me livrar desse aperto. Tudo só piorava. A programação da TV mudava, as pessoas, as casas e as ruas ficavam mais barulhentas. Todos se abraçavam e não era permitido ser triste. Entretanto, meu desejo de ficar isolada só aumentava com essa animação de fim de ano, em que tudo era diferente. Porém, eu não conseguia explicar isso para ninguém. Ficava cada vez mais sozinha ou ‘na minha’, como minha família dizia. Por que aquela sensação de não fazer parte daquilo tudo me perseguia?

O padrão de fim de ano

Com o tempo, fui percebendo um padrão no comportamento das pessoas. Percebi que havia o ‘modo fim de ano’. Mesmas frases, mesmos desejos, mesma necessidade de alegria e comunhão. Infelizmente, na contramão disso, eu percebia aqueles que bebiam, comiam e brigavam para mais. Assim, me sentia bem mais velha que minha idade cronológica. Questionava os adultos, não conseguia me relacionar com minhas primas da mesma idade, não tinha amigos. Minhas irmãs eram uma mais calada que eu, e a outra muito infantil, para mim. Resolvi me moldar e fazer como as pessoas faziam. Agora, sim, essa era minha rotina de fim de ano. Estava no modo Selma, versão fim de ano.

Autismo, fim de ano, horário de verão e o nó no cérebro

Já adulta, quis fazer a ceia em minha casa. Não deu muito certo. Ficava apavorada para receber as pessoas. Acabava por sobrecarregar meu marido e sempre me arrependia de não ter conseguido me sentir à vontade. À meia noite, durante anos, eu abraçava as pessoas, contrariada. Sabia que, na verdade, eram 23 horas, pois estávamos no horário de verão. Por que ninguém ligava para isso, exceto eu?

Há uns 10 anos, um motorista de taxi me ouviu sobre esse meu pensamento e disse com sabedoria: “E daí? Você comemora o horário ou a alegria de estar reunida com quem gosta? De saber que pode renovar a esperança no novo ano que chega? Afinal, até o resto do mundo comemora em horários diferentes.” E me olhou triunfante. Observei a alegria dele ao falar da esperança e percebi que fazia sentido o que ele me disse. Problema resolvido. Ele desatou o nó do meu cérebro.

Uma autista no fim de ano, hoje

Daqui a 5 dias, celebraremos o ano de 2022. Está perfeito. Aprendi que todos nós precisamos de rituais e de fechar e abrir ciclos. Consigo me sentir em paz em qualquer lugar que eu esteja. O aperto no peito ainda vem. Bem mais leve, no entanto. O que mais sinto nessa época é gratidão. Sou grata a oportunidade constante de aprendizado que os desafios me trazem. Já não os temo.

Pelo contrário, comemoro a possibilidade de mais uma vitória. À minha maneira, faço uma analogia com o pensamento de Michelangelo. Ele dizia que os blocos de pedra usados em suas esculturas, eram prisões para as figuras que neles viviam. Michelangelo os libertava, ao esculpi-los. Da mesma forma que ele libertou a extraordinária escultura de Davi, eu gosto de libertar a vitória contida em cada desafio de minha vida.

Um ano de renovada esperança e vitórias concretas para todos nós!

 

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Jornalista e relações públicas, diagnosticada com autismo, autora dos livros "Minha Vida de Trás pra Frente", "Dez Anos Depois", "Camaleônicos" e "Autismo no Feminino", mantém o site "O Mundo Autista" no Portal UAI e o canal do YouTube "Mundo Autista".

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