28 de fevereiro de 2022

Tempo de Leitura: 2 minutos

“Autistas não são rancorosos”. Quem me disse a frase que guia a reflexão deste texto foi meu pai. A gente estava comentando sobre um dos personagens do filme “Ataque dos Cães”, da Netflix. O jovem rapaz interpretado por Kodi Smit-McPhee, neste drama de época, apresenta traços que hoje podem ser associados ao espectro autista.  Essa identificação com o personagem me levou a pensar sobre autistas e (a falta de) rancor.

Papai conviveu profundamente com duas autistas. Tanto eu quanto minha mãe, de fato, manifestamos a característica de esquecer atitudes mesquinhas de outras pessoas conosco. Mamãe chega ao cúmulo de ter que anotar quando alguém a trata mal para se proteger quando houver um novo contato com a pessoa. Realmente, principalmente sob a ótica neurotípica, a gente parece não ter sequer a capacidade de guardar mágoa e ressentimento.

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O rancor

Uma rápida pesquisa me diz que o rancor se trata de um “sentimento de profunda aversão provocado por experiência vivida; forte ressentimento” e também se manifesta como um “ódio profundo, não expresso”. São palavras pesadas que me levam a reforçar a crença em antigos provérbios do tipo ‘guardar ressentimento é como tomar veneno e esperar que a outra pessoa morra envenenada’.

De fato, alimentar o rancor parece nos manter apenas em um ciclo de emoções desagradáveis e atitudes sofridas. Por outro lado, em algum grau, a dor que fundamenta o rancor tem um papel importante na vida de todas as pessoas.

Autistas e (a falta de) rancor: Parece adorável, mas não é

Afinal, lembrar de uma situação ruim na experiência com o outro e até da raiva que ela nos provocou nos torna menos vulneráveis a repetir os mesmos erros e evita situações de humilhação. Quantas vezes eu e minha mãe caímos em relacionamentos abusivos, românticos ou não?

Isso porque a agressão era fortalecida quando voltávamos ao contato com a pessoa manipuladora, depois de vivenciarmos situações traumáticas. Muitas vezes, a gente agia como se nada tivesse acontecido, porque não conseguimos fomentar essa aversão dentro de nós. Parece adorável, mas não é. O problema dessa postura era impedir uma posição mais firme em momentos que exigiam essa conduta, para evitar maior sofrimento futuro.

Será que podemos generalizar?

Claro que não. Pois autistas são seres humanos como qualquer outro. Assim, estamos expostos aos dilemas do mundo tanto quanto uma pessoa que não apresenta essa condição. Então, não podemos generalizar e dizer que autistas não são rancorosos. Ou que mesmo uma pessoa autista que não costume apresentar mágoa ou ressentimento não possa manifestar essas percepções em um momento ou outro.

Em minha experiência particular, houve situações específicas que me trouxeram muita raiva. Dessa forma, despendi de muito tempo de terapia e oração para não deixar que a amargura tomasse conta de mim. Isso porque o hiperfoco não me deixava esquecer desse ressentimento. De modo que, em meu cotidiano, o rancor se aprofundava, realmente, como esse ódio intenso que eu não expressava.

Autistas não são rancorosos?

A resposta para a pergunta que dá título ao texto, assim, é o menos relevante. Nada é um bem ou mal em si. Mas a maneira como lidamos com cada interação molda as nossas vivências. Assim, importa menos se o rancor vira um hiperfoco ou se não conseguimos registrar o mal que alguém fez. Quando a gente se conhece e se valoriza, podemos agir com ética e equilibrar as emoções. Independentemente dos fatores externos. Isso é vida!

 

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Jornalista, escritora, apresentadora, pesquisadora, 24 anos, diagnosticada autista aos 11, autora de oito livros, mantém o site O Mundo Autista no portal UAI e o canal do YouTube Mundo Autista.

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