1 de junho de 2019

Tempo de Leitura: 5 minutos

As redes sociais têm revelado um lado sombrio e polarizado do autismo: agressões fervorosas entre dois grupos que discordam de como definir o autismo.

Parte da polarização de opiniões sobre o autismo está relacionada com seu caráter heterogêneo: chamamos de autista um garoto de 6 anos de idade que não fala, com atraso intelectual e diversas convulsões por dia, uma jovem de 20 anos que estuda computação gráfica, com muita ansiedade e “tiques estranhos”, e um homem de 40 anos que segue uma rotina religiosa, sabe todos os detalhes de seriados de TV e não tem interesse na vida social.

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“Autismos” seria a melhor definição para esse espectro de comportamentos e comorbidades. Não existe um autismo típico, cada caso tem sua própria natureza. A outra contribuição para a polarização vem dos profissionais de saúde. Pessoas com autismo são vistas sob óticas diferentes dependendo do profissional — seja pediatra, neurologista, psiquiatra, terapeuta comportamental, dentista, psicólogo, fonoaudiólogo e tantos outros que se relacionam com o autista. É a velha história dos cegos e do elefante, cada um tem uma perspectiva diferente da condição autista, com opiniões fortes de como o autismo deve ser encarado e tratado. Outros ignoram completamente o problema, buscam aceitação, levantando a bandeira da neurodiversidade, rejeitando opções de tratamento e cura. É óbvio que isso tudo deixa os familiares confusos e pulveriza a força política pró-autista.

Pois bem, no espírito da conciliação, de encontrar o que é comum e válido entre as diversas tribos pró-autistas, proponho quatro perspectivas de comunidades interessadas em autismo, que se especializaram tanto na forma como falam sobre o autismo, que se tornaram reinos ou feudos isolados e distintos. Cada reino tem suas verdades, mas todos falham na tentativa de entender, ou mesmo reconhecer, que suas verdades não são aceitas fora de suas fronteiras.

Primeiro Reino: o autismo como doença 

A condição autista foi descrita pela primeira vez pelo médico Leo Kanner em 1943. Desde então, o foco da pesquisa médica tem encarado o autismo como se fosse uma doença. Nesse reino encontram-se médicos, pesquisadores, familiares e pacientes. Todos veem o autismo como uma doença do cérebro que pode ser tratada ou mesmo revertida, da mesma forma que um câncer. Investigam a melhoria do diagnóstico, intervenções e a cura como objetivo final. Teorias médicas evoluíram da mãe-geladeira para formas complexas da neurogenética. Buscam-se marcadores moleculares da doença e novos remédios. Ao contrário dos que veem o autismo como uma deficiência, buscando melhores serviços e suporte, esse reino foca a lógica puramente científica, para justamente reduzir o número de serviços e de suporte dados ao autista. Querem cortar o mal pela raíz. Querem o autista completamente independente.

Segundo Reino: o autismo como identidade 

Nesse reino, os integrantes substituem a classificação de autismo como doença por diversidade e  até identidade. Esses, juntos com as comunidades de pessoas com deficiência, veem o autismo como sendo apenas mais uma das milhares de variações cognitivas da humanidade, com necessidade de aceitação, não de cura. Pessoas com autismo leve, que podem viver de forma semi, ou mesmo totalmente independente, mas que não se sentem acolhidas socialmente, fazem parte desse grupo. Ao invés de buscarem formas de se tornarem “normais”, focam a inclusão e a aceitação social. Exigem reconhecimento de que o autismo é uma forma de pensar diferente, que pode produzir soluções inovadoras para problemas difíceis. Muitos veem os resultados genéticos como uma forma de eugenia, não acreditam em explicações de causalidade e acham que tratamentos são uma forma compulsória de conformismo social. Como as comunidades de pessoas com deficiência, membros desse reino buscam apoio da sociedade, melhorias educacionais, serviços ocupacionais e direitos cívicos. Os mais extremistas deturpam o conceito de neurodiversidade a ponto de atacar fervorosamente o primeiro reino, “culpando” os pais pelo tratamento dos filhos.

Terceiro Reino: o autismo como lesão 

Talvez uma das discussões mais acaloradas seja o papel da vacina como causadora de uma lesão levando ao autismo. Membros dessa comunidade são pais que observaram regressões de desenvolvimento de suas crianças após vacinação. Mesmo frente a fortes evidências epidemiológicas de que vacinas não causam autismo, defensores desta teoria sugerem que esses estudos estejam mascarando casos raros que foram causados por vacinas. Ao contrário do grupo anterior, os pacientes autistas neste caso são afetados de forma severa, não são verbais, têm disfunções imunológicas, gastrointestinais e ataques epiléticos. Familiares deste grupo, sentindo que a ciência e a medicina ainda não geraram medicamentos eficazes, buscam alternativas como dietas específicas, desintoxicação etc. A grande distinção deste grupo é acreditarem que o autismo fora causado por uma determinada lesão cerebral, por algum episódio específico na história de vida do indivíduo. Portanto, levantam a bandeira da prevenção, reconhecendo que ao descobrir a causa, poderíamos frear a prevalência do autismo.

Quarto Reino: o autismo como modelo 

Da mesma forma que cientistas usam a cegueira para entender o sistema visual, membros desse grupo buscam no autismo a oportunidade de entender o cérebro social. Esse grupo é composto primordialmente por neurocientistas interessados em compreender o comportamento social humano a partir de ferramentas como neuroimagem e neuroanatomia em tecidos cerebrais. O objetivo é mapear o cérebro para encontrar vias nervosas que processam informações sociais específicas, tais como reconhecimento de faces, postura em grupo e teoria da mente. Esses cientistas apostam em modelos animais, ou em estudos de ressonância magnética do cérebro humano, como instrumentos importantes para que sejam obtidos insights sobre a natureza humana, sem obrigatoriamente se preocuparem com a causa ou cura do autismo.

Reconheço que esses quatro reinos não representem necessariamente todo o universo do espectro autista. No entanto, descrevem de forma ampla perspectivas distintas que, hoje em dia, dividem opiniões sobre o autismo. Esses feudos criaram estruturas super organizadas, como sociedades profissionais, ONGs, redes sociais etc., para se fortificarem. Infelizmente essa atitude serviu também para criarem barreiras entre si, dificultando interações construtivas e trocas de idéias entre seus membros menos extremistas. Assim, podemos entender as críticas que sofrem os geneticistas, que veem o autismo como doença e buscam diagnóstico pré-natal,  e que seriam agentes abortivos dos autistas da próxima geração.

Mas quem afinal está certo? É provável que todos os cegos estejam certos parcialmente. O importante é notar que cada um dos reinos autistas tem oportunidades de oferecer algo de construtivo. Precisamos tanto de melhores diagnósticos e tratamentos, como de melhores serviços, estratégias de prevenção e um entendimento mais apurado do cérebro social humano. Acredito que quanto mais os membros desses grupos se mantiverem isolados, pior será para o autismo. Acho que deveríamos buscar o oposto, abrindo a fronteira desses reinos e favorecendo a fertilização cruzada de idéias. Essa atitude pode mostrar o que existe de comum entre esses reinos. Por exemplo, a luta por melhores serviços profissionais que atendam à demanda autista. Outro exemplo seria a criação de um centro de excelência para estudos do espectro autista que testasse, sem ser tendencioso, idéias vindas das diversas áreas. 

Penso que nada de muito positivo vá acontecer se cada grupo insistir na sua própria visão. Será uma pena olharmos do futuro para o que acontece hoje, e concluirmos que poderíamos ter lutado juntos por algo transformador, buscando cooperação ao invés de conflito. Acho que é possível unirmos forças para atingir metas a curto prazo, como melhores escolas para os autistas, e também soluções de longo prazo. Dessa forma teremos um mundo melhor para crianças e adultos autistas.

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Neurocientista, professor da faculdade de medicina da Universidade da Califórnia em San Diego (EUA), diretor do Programa de Células-Tronco da mesma universidade e cofundador da startup de biotecnologia Tismoo biotech e da plataforma social Tismoo.me.

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