17 de julho de 2025

Tempo de Leitura: 5 minutos

Hoje quero falar sobre Três Gerações de Mulheres Autistas à luz de um conceito budista. É que, no budismo, a relação entre mestre e discípulo é como uma corrida de revezamento, onde passam o bastão do conhecimento e dos objetivos adiante. Assim, mestres revelam suas aspirações e o bem que desejam realizar. Isso porque a vida é finita e a continuidade é crucial para alcançar feitos duradouros. Então, eles correm à frente. Depois, transferem o bastão da justiça, felicidade e paz para as próximas gerações, que então assumem a corrida.

É sob essa luz que desejo honrar a notável jornada de três gerações de mulheres autistas: minha avó, minha mãe e eu. Nossas vidas, que se entrelaçam por experiências únicas e um forte elo com a prática budista, ilustram a passagem desse bastão de sabedoria, coragem e superação.

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Irene: a coragem pioneira das três gerações de mulheres autistas

Minha avó, Irene, aos 83 anos de idade é um testemunho vivo de pioneirismo, coragem e benevolência. Nos anos 1960, para proteger suas três filhas de uma situação violenta, ela fugiu de casa. Apesar de receber críticas por ser uma mulher “largada” e sem formação profissional, Irene se reinventou. De bicos e trabalho como faxineira, ela completou os estudos, tornou-se professora e advogada, e se aposentou como procuradora. Sua reviravolta revolucionou o destino de todas as gerações seguintes. E hoje ela recebe reverências e admiração por onde passa.

Contudo, a vida de Vovó Irene não foi fácil. Afinal, depressão e estresse pós-traumático contrastam com sua alegria constante. Isso porque jovem, ela chegava a esconder de suas filhas. Aliás, elas se tornaram mulheres profissionalmente brilhantes. Mas, com personalidades distintas. Além disso, Vovó Irene é, de longe, a pessoa que menos se importa com dinheiro, sempre disposta a ajudar. O que aocontece mesmo que isso a leve a ser “passada para trás”.

Vovó Irene e o autismo em idosos

Minha mãe conta que, quando criança, Vovó Irene, mesmo sem formação em física ou química, conseguia resolver as questões das filhas por puro raciocínio lógico. Ela também é conhecida por sua sinceridade e autenticidade. Por isso, foi às vezes rotulada como “desbocada” ou “atrevida”. O que lhe rendeu julgamentos no ambiente formal da procuradoria. Mas, como uma mulher autista nascida nos anos 1940, ela precisou se impor.

Hoje, Vovó lamenta a perda de autonomia com a idade. Afinal, isso lhe traz memórias dolorosas da juventude. Ela também resiste a mudanças. Antes de visitar as filhas, geralmente tem uma crise. Só que depois se adapta e adora o convívio. Um dos aspectos mais cativantes de sua personalidade são seus hiperfocos infantis. Aliás, eles resultaram em coleções infinitas de objetos de gato e sapo.

Dessa forma, Vovó Irene está sempre compartilhando sabedoria e continua a aprender. Ela também dedica-se à prática budista desde sua conversão em 1981. Assim, ela é um farol de força e capacidade de transformação. Portanto, ser neta de Irene é ter a certeza de que jamais serei derrotada por qualquer desafio.

Minha mãe: a jornalista das camadas e o mascaramento

Minha mãe, a filha do meio de Vovó Irene, se autodenominava “a pobre da família”. Inclusive porque ela acreditava que suas irmãs eram inteligentes e ela, apenas esforçada. Essa percepção mudou com o diagnóstico de Dupla Excepcionalidade: autismo com altas habilidades. Por suas dificuldades na comunicação, ela, que sempre foi excelente no masking (mascaramento) e na observação do comportamento alheio, decidiu investir em seu maior desafio. Afinal, queria compreender as dinâmicas sociais. E, para isso, cursou jornalismo. Embora tenha passado no vestibular de primeira, só acreditou na aprovação após ser avisada por terceiros.

A psicóloga da minha mãe a compara a uma boneca ucraniana com muitas camadas. Isso ocorre devido à necessidade de desenvolver o mascaramento para sobreviver em um mercado de trabalho que exige alta finesse social, como o jornalismo e a comunicação. O que gerou consequências como músculos retesados por tensão e crises inexplicáveis. Esses colapsos, frequentemente ligados ao seu senso de justiça e hiperempatia, a levavam a abraçar as brigas dos outros e a buscar soluções incansáveis para qualquer problema. Por isso, mamãe era rotulada como alguém que “explodia do nada”. O que acontecia apesar de ela ser “boazinha” na maior parte do tempo.

Selma Sueli Silva: uma radialista pioneira em três gerações de mulheres autistas

Ademais, minha mãe foi pioneira entre as mulheres radialistas em Minas Gerais. Afinal ,ela estreou na Rádio Itatiaia no final dos anos 1990. Contudo, sofreu muito no ambiente de trabalho por sua pouca noção social. Então, sempre pedia que a sinalizassem quando fosse inconveniente. Contudo, chegou a ser demitida por rigidez de pensamento. Sua ingenuidade também lhe custou caro, especialmente em relacionamentos amorosos. Apesar de ser uma ótima líder profissional, era constantemente explorada por empregadas domésticas na vida pessoal. O que acontecia por mamãe não saber agir como chefe nesse contexto.

Hoje, minha mãe encontra conforto na prática budista, em seu hiperfoco em romances e séries policiais ou de viagem no tempo, e em projetos literários que exploram sua expertise jornalística. Além disso, ela é autora de livros como “Minha Vida de Trás pra Frente: A jornalista que se descobriu autista” (2017), “Camaleônicos: A vida de adultos autistas” (2019) e “Autismo no Feminino” (2022). Atualmente, trabalha em um novo livro-reportagem e em um projeto acadêmico. Desde 2015, é minha parceira no canal “Mundo Autista” no YouTube. Também, continua investindo em estudos para compartilhar seu conhecimento com o mundo.

Eu: a voz da visibilidade e a última geração das três gerações de mulheres autistas

Eu, com um nível de suporte maior que o de minha avó e minha mãe, venho lutando desde a infância contra um prognóstico de dependência vitalícia. Além disso, enfrentei forte fobia social no ensino médio. E, provavelmente, tenho as crises mais intensas entre nós três. Embora tenha tentado morar sozinha, isso quase me custou a vida. Apesar disso, tornei-me Mestre em Comunicação, Territorialidades e Vulnerabilidades pela UFMG. E, atualmente, curso Doutorado em Literatura, Cultura e Tradução na UFPel.

Como escritora, minhas obras notáveis incluem “Outro Olhar” (2015), “Danielle, Asperger” (2016), “Neurodivergentes: Autismo na Contemporaneidade” (2019), a biografia “Ikeda: Um Século de Humanismo” (2020) e “Metamorfoses: Autismo e Diversidade de Gênero” (2023). Agora, aventuro-me como romancista chick-lit com “A Influenciadora e o Crítico” (2025). Já meu hiperfoco em cinema me levou a produzir críticas desde os 12 anos (2009), com uma qualidade que impressionava adultos e recebia elogios dos chefes da minha mãe.

A trajetória de Sophia Mendonça, a última das três gerações de mulheres autistas

Em 2016, aos 19 anos, fiz história ao me tornar a pessoa mais jovem a receber o Grande Colar do Mérito Legislativo Municipal de Belo Horizonte. Em 2023, nossa atuação como influenciadora digital foi coroada com o Prêmio de Influenciadores Digitais do Portal da Comunicação, na categoria pessoas com deficiência, pelo canal Mundo Autista.

Além disso, minha participação na série documental “Gêmeas Trans: Uma Nova Vida” da HBO em 2023 proporcionou visibilidade à experiência de mulheres trans autistas. Afinal, passei por cirurgia de redesignação sexual em 2022. Isso aconteceu após uma longa saga contra o capacitismo e a transfobia de profissionais de saúde.

O legado do bastão das três gerações de mulheres autistas

No budismo, o número três é cabalístico, pois encerra um ciclo. Por isso, faço questão de honrar o legado de minha mãe e minha avó. Assim, minha prática espiritual budista, que iniciei com elas, se liga intrinsecamente à minha vida pessoal e profissional. Todas elas, aliás, estão em constante diálogo com a sociedade. Então, todas as minhas vitórias e objetivos concretizados são frutos de muita fé, prática e estudo.

Nossas histórias, embora únicas, convergem na resiliência, na busca por autoconhecimento e na dedicação à causa da neurodiversidade. Elas me passaram o bastão da sabedoria, da coragem e da superação . E cada uma de nós, à sua maneira, continua a corrida pela justiça, felicidade e paz para toda a humanidade.

(Originalmente publicado em O Mundo Autista, no portal UAI)

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Jornalista, escritora, apresentadora, pesquisadora, 24 anos, diagnosticada autista aos 11, autora de oito livros, mantém o site O Mundo Autista no portal UAI e o canal do YouTube Mundo Autista.

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