23 de maio de 2025

Tempo de Leitura: 3 minutos

Um relatório divulgado no ano passado pelo Núcleo de Pesquisas em Políticas Públicas de Saúde Mental, do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), trouxe conclusões preocupantes sobre como a chamada “Indústria do Autismo” tem ditado as políticas públicas de inclusão e assistência a pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) no Brasil, dificultando, inclusive, o acesso ao suporte médico por usuários do Sistema Único de Saúde (SUS).

O termo “Indústria do Autismo” foi cunhado pela professora americana Alicia Broderick, autora do livro The Autism Industrial Complex: How Brands, Marketing, and Capital Investment Turned Autism Into Big Business (tradução livre: O Complexo Industrial do Autismo: como marcas, marketing e investimento de capital transformaram o autismo em um grande negócio). Alicia é doutora pela Universidade de Montclair, em Nova Jersey, nos Estados Unidos, e é uma referência no tema.

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Na obra, a autora discorre sobre como o autismo, nos últimos anos, se transformou em uma peça-chave de uma complexa engrenagem mercadológica, voltada principalmente para o lucro, em vez de garantir o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas autistas. Isso se dá por meio da comercialização de medicamentos, dispositivos eletrônicos e suplementos vitamínicos — muitas vezes sem eficácia comprovada para tratar comorbidades associadas ao transtorno —, além da proliferação de cursos sobre Análise do Comportamento Aplicada (ABA), muitos sem regulamentação adequada.

Segundo estimativa recente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há aproximadamente dois milhões de autistas no Brasil, dos quais 70% são dependentes do SUS. Uma parcela muito pequena tem acesso à saúde suplementar. Uma das conclusões preocupantes do relatório foi o aumento expressivo de clínicas particulares especializadas no diagnóstico do autismo.

Autismo e interesses político-financeiros

O relatório também aponta o direcionamento de recursos públicos, pagos com nossos impostos, para a criação de clínicas e o financiamento de associações de pais de autistas, com o objetivo de atender pessoas com TEA. Serviços que, em tese, poderiam (e deveriam) ser oferecidos diretamente pelo SUS.

Essa prática contraria princípios constitucionais e estruturais do SUS, como a universalização, integralidade e equidade, além da abordagem intersetorial e comunitária no atendimento em saúde mental. É claro que o modelo atual de atendimento ao autismo está defasado, especialmente porque foi concebido no final da década de 1980, quando ainda não havia conscientização ampla sobre saúde mental — muito menos sobre o autismo.

Ninguém “vira” autista da noite para o dia. O que temos observado, sobretudo na última década, é o aumento de diagnósticos tardios, especialmente entre homens e mulheres adultos, e até mesmo em idosos. O autismo não desaparece quando se chega à fase adulta, como muitos preferem ignorar. É justamente nessa etapa da vida que o peso da ausência de suporte, que é mais comum na infância, se revela. Tornam-se invisíveis as dores de lidar com as mudanças corporais, as frustrações do capacitismo, o primeiro amor, o desemprego. Esse é o lado nada romântico que a sociedade insiste em ignorar. Some-se a isso o abandono do Estado nas políticas assistenciais voltadas à vida adulta.

A inclusão no discurso é uma; na prática, é outra

O último mês de abril foi marcado pela campanha Abril Azul, voltada à conscientização sobre o autismo, com base no Dia Mundial de Conscientização sobre o Autismo, celebrado em 2 de abril e instituído pela ONU em 2007. O tema esteve presente em programas de televisão, rádio, eventos públicos e privados em Goiás e até no Congresso Nacional em Brasília.

Falar sobre o autismo é importante: mas e os autistas adultos? Mais uma vez, fomos excluídos dos debates. Como pode a mesma sociedade que prega inclusão durante trinta dias ignorar aqueles que receberam diagnóstico tardio, como se só crianças autistas merecessem atenção? Estaria o autismo deixando de ser uma pauta social para se tornar apenas um discurso de ocasião?

Um país que afirma defender a inclusão, mas exclui os autistas dos espaços de debate sobre políticas públicas — seja no Congresso Nacional, seja no Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (CONADE), vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania —, não pode ser considerado verdadeiramente democrático.

É verdade que tivemos muitos avanços nos últimos anos. Mas, para que sejam permanentes, não basta que a comunidade atípica reconheça seus direitos: é preciso lutar por eles. Acima de tudo, é necessário que a sociedade respeite e ouça as vozes dos autistas. Só assim o Brasil será verdadeiramente inclusivo.

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Jornalista, autista e ativista na luta antirracista.

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