12 de outubro de 2025

Tempo de Leitura: 3 minutos

Hoje quero compartilhar memórias de uma infância autista e trans. Toda infância tem uma trilha sonora, uma receita ou, no meu caso, uma história. A minha era a da Cinderela. Não apenas uma versão, mas todas as suas diversas variações. Esse foi o meu primeiro hiperfoco, um interesse especial que me consumia e me definia, muito antes de eu ter palavras para nomeá-lo.

Na formatura do maternal, aos cinco anos, li em voz alta o livro com o meu conto de fadas favorito. Os pais parabenizaram minha mãe pela minha proeza: “Nossa, ela já sabe ler!”. Na época, ela respondia com modéstia, acreditando que, de tanto ouvir a história todas as noites, eu a tinha simplesmente decorado.

Publicidade
Território Saber - e-book

Hoje, com o que sabemos sobre a aquisição da leitura por crianças autistas — um fenômeno por vezes chamado de hiperlexia —, faz todo o sentido que eu já estivesse, de fato, lendo aquelas palavras. Então, aquela habilidade precoce não era um truque de memória, mas o primeiro grande sinal da fiação única do meu cérebro.

Um universo de percepções únicas: Memórias de uma infância autista e trans

Cada criança tem um jeito singular de ver e interagir com o mundo. O que para mim era um mergulho profundo em um universo de contos de fadas, para outra criança pode ser o fascínio por dinossauros ou sistemas de metrô. Essa intensidade é uma das marcas do espectro autista.

Não se trata de uma realidade distante. Os números mostram que essas crianças estão cada vez mais visíveis:

  • Censo Escolar de 2023 no Brasil registrou um aumento significativo de estudantes autistas na rede de ensino.
  • Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 1 em cada 100 crianças no mundo esteja no espectro.
  • Nos EUA, onde o acesso ao diagnóstico é mais amplo, o CDC (Centro de Controle e Prevenção de Doenças) detectou a prevalência de 1 em cada 31 crianças.

No entanto, essa “superpotência” para focar e aprender de forma atípica vinha acompanhada de desafios. Afinal, eu não era uma criança independente. Isso porque tinha uma destreza terrível para arrumar a mochila, minha coordenação motora era sofrível e tarefas básicas na escolinha pareciam montanhas a serem escaladas. O que parecia timidez era, na verdade, uma insegurança profunda que já prenunciava uma fobia social. Com isso, me fazia necessitar constantemente da presença de um adulto.

Encontrando o próprio roteiro: A descoberta do gênero nas memórias de uma infância autista e trans

Minha infância, porém, era atravessada por outra camada de complexidade: a identidade de gênero. Eu não sabia, mas minha história pessoal já se conectava com estatísticas globais. Afinal, pesquisas indicam que cerca de 1% da população se identifica como transgênero. O que significa que, em qualquer escola, há crianças vivendo essa jornada.

Muitos imaginam que a identidade de gênero é uma construção tardia, mas a ciência aponta para outro caminho. Como observou o pesquisador Alexandre Saadeh em entrevista a Renata Ceribelli, a genitália se forma por volta da 10ª semana de gestação, mas a área do cérebro responsável pela identidade de gênero se configura a partir da 20ª semana. Então, ela pode ou não ser congruente com o sexo biológico.

É por isso que, entre os 2 e 4 anos, quando a maturidade neurológica permite à criança entender o próprio eu, o sofrimento da incongruência de gênero pode começar a se manifestar.

Foi exatamente o que aconteceu comigo. E, ao contrário do que se poderia pensar, eu não queria contrariar os estereótipos de gênero. Pelo contrário. Era justamente nos rituais, roupas e brincadeiras lidas como “femininas” que eu encontrava o conforto e o alívio do pertencimento. Assim, era ali que eu sentia que me encaixava, mesmo que o mundo ao redor ainda não entendesse.

A Interseção: Quando os mundos se encontram nas memórias de uma infância autista e trans

Por muito tempo, vivi essas duas realidades — autismo e transgeneridade — como trilhas paralelas. Hoje, sei que elas estão profundamente conectadas. Estudos recentes, tema que abordei em minha dissertação de mestrado e no livro “Metamorfoses”, mostram que pessoas no espectro autista têm uma probabilidade significativamente maior de se identificarem como transgênero em comparação com a população neurotípica.

Isso torna a necessidade de um ambiente acolhedor dupla. A criança precisa de espaço para ser quem é. O que ocorre tanto em sua neurodivergência quanto em sua identidade de gênero.

Felizmente, eu recebi muito amor na infância. Esse amor foi um alicerce que tornou minhas memórias daquele tempo doces e puras, mesmo que não tenha se traduzido no mesmo acolhimento durante a turbulenta adolescência. Então, foi na infância que vivi alguns dos melhores momentos da minha vida, em contato com a arte que tanto me fascinava e com o carinho de amigos e familiares.

Aquele amor incondicional não resolveu todos os quebra-cabeças, mas me deu a base para sobreviver e, eventualmente, florescer. Isso porque ele me ensinou que, antes de qualquer diagnóstico ou identidade, toda criança merece um lugar seguro para, simplesmente, ser.

(Originalmente publicado em O Mundo Autista, no portal UAI)

COMPARTILHAR:

Jornalista, escritora, apresentadora, pesquisadora, 24 anos, diagnosticada autista aos 11, autora de oito livros, mantém o site O Mundo Autista no portal UAI e o canal do YouTube Mundo Autista.

Livro sobre autismo e adolescência é anunciado

Governo de SP unifica funções de apoio a alunos com autismo nas escolas estaduais

Publicidade
Assine a Revista Autismo
Assine aqui a nossa Newsletter grátis
Clique aqui se você tem DISLEXIA (saiba mais aqui)