3 de junho de 2022

Tempo de Leitura: 4 minutos

Passei mais de 50 anos tentando me adaptar à uma tipicidade que não era minha. Tenho memória viva de, desde os 3 anos de idade, observar as pessoas à minha volta. Queria entender aquela sensação de “cadê o meu lugar?”. Éramos eu, minhas irmãs e meus pais. Porém, de repente, com a separação deles, éramos eu, minhas irmãs, minha mãe, minha vó, meu vô e meus 8 tios. O tio mais novo era da idade de minha irmã mais velha, 5 anos. E o mais velho, era três anos mais novo que minha mãe. Ele tinha 22 anos. Entre os tios, duas tias de 8 e 13 anos. Eu não tinha a menor ideia de que era uma pessoa com deficiência. Hoje sei que sou. E, tanto antes como agora, uma verdade me atravessa: crescer dói!

Crescer dói mesmo

Ao dividir minha vida em infância, adolescência, juventude, fase adulta até os 50 anos, ela fica mais ou menos assim. Durante a infância me agarrei ao que me era ensinado pelos adultos. Tentei entender o que havia me trazido ao convívio de uma família imensa. Tentava entender as regras, duvidava de que eram iguais para todos. Mas segui-las, ainda era o meu melhor alento. Minha irmã mais velha, de repente, passou a se comportar quase como adulto. Contudo, a mais nova, coitada, era alvo constante dos deboches dos tios maiores. Ela voltara a fazer xixi na cama, depois que meus pais separaram. Hoje penso que, caramba, ela só tinha 2 anos.

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Na adolescência, embora já tivéssemos nosso próprio canto, minha vida piorou. E muito. Ficava perdida entre as tarefas da casa, as da escola e a necessidade de me relacionar com mais pessoas que antes. Nesta época, comecei a agir por erro e acerto para tentar entender as pessoas. Meu objetivo era passar o quanto mais despercebida que pudesse. Quanto mais eu crescia, mais eu entendia, com a minha própria vida, que crescer dói. Em outras palavras, o mundo ficava cada vez mais complicado. As constantes dessa constatação de complicação crescente? Ora, as pessoas e as situações que as envolviam.

Crescer não tem linha de chegada, logo…

Quando a juventude chegou, percebi que este momento é uma espécie de transição para a vida adulta plena. Ou seja, na juventude, tudo que o que as pessoas podem, elas começam a cobrar de você. Muitas pessoas reunidas são o que chamamos de sociedade. Quando a sociedade cobra e você não reage como ela espera, babau. Nascem os rótulos.

Nesta época, comecei a receber tantos rótulos, que tive de repensar minha vida. Eu era a ‘sem esportiva’, a ‘nervosinha’, ‘a boazinha’ – quando agradava todos, mas nem sempre agradava a mim mesma. Foi aí que ‘me ferrei’.

Infelizmente, criei a regra de que se você agradar todas as pessoas, você terá uma vida mais harmoniosa. Isso para evitar atritos. É que as pessoas costumam ser cruéis quando se aborrecem. Ou quando as coisas não caminham do jeito que elas querem. Em outras palavras, muitas pessoas se aborrecem quando situações e outras pessoas não se encaixam na expectativa delas. A tal sociedade, lembram?

Enfim, adulta!

Agradava o outro, mas o que fazer com as emoções e confusões que cresciam dentro de mim? A coisa mais complicada da vida é tentar se encaixar a um contexto que você sequer entende. Acrescente-se a isso, as regras de um mercado competitivo e pernóstico das décadas de 80 e 90.

Foram muitas experiências ‘non sense’, outras bem sofridas mesmo. Entretanto, a cada dia, eu entendia mais da dinâmica de cada grupo. Família, trabalho, autoridades, colegas, grupos religiosos. Cada qual com suas peculiaridades. De vez em quando eu me confundia e aí era crise na certa.

Mas, até para isso, elaborei estratégias de modo a não ser considerada ‘fora da medida da régua’. Por exemplo, eu não sabia discernir atitudes e palavras que sinalizam que a mulher está ‘na pista’. Desse modo, criei uma faceta ‘descolada’ com todos. Dessa forma, a percepção era de que eu tratava todos de maneira igual. Sem deferências. Sem problemas, portanto.

Outra estratégia, era não permitir que a interação caminhasse para um ponto que eu não dominasse. Caso acontecesse, eu já tinha a minha lista de saídas estratégicas. Mas, a verdade, era que essa vigília constante, esse esforço para classificar e segmentar todas as interações de minha vida, me levaram a um cansaço crônico. Eu não sei relaxar. Minha cabeça se mantém em alerta, 24 horas ao dia. Relacionar exige técnicas e dá trabalho. Muito trabalho.

Depois dos 50 e do meu diagnóstico. Aqui também, crescer dói

Desde 2003, sou acompanhada por psicólogos, com alguns intervalos sem eles. Há uns 2 meses, finalmente, encontrei uma profissional que entende de gente. Além disso, entende de pessoa autista. Finalmente, consigo organizar minhas demandas de autoconhecimento pós diagnóstico.

Contudo, de uns dias para cá, estou muito mexida. É que, com o autoconhecimento vem uma espontaneidade e leveza libertadoras. Eu as acolho e me dou bem com elas. Mas, infelizmente, muitas pessoas (de novo a sociedade), estão estranhando minhas atitudes. E era para estranhar mesmo. Pois cada um de nós, tem o próprio jeito de ser.

Assim, o diferente vem para somar, para ativar o nosso gatilho da negociação e da criatividade. Vem para ousar pensar em algo fora da caixa. Tenho tido alguns e louváveis acolhimentos. No entanto, você que me lê, muitas pessoas insistem para que eu volte para a caixinha, para o padrão. Aquele formato velho conhecido da maioria. Algo que não os instiga a ações diferentes das de sempre.

Oh, céus. Eu não quero que a minha recém-descoberta diferença afaste as pessoas de mim. Eu quero apenas uma chance. Não, eu não sou chata. Também não sou prolixa. E nem me estendo para além da paciência alheia. Saibam que eu apenas busco, depois do diagnóstico, encontrar o meu ponto de equilíbrio. Então, eu dispenso a antiga zona de conforto que agrada mais às pessoas. Mas que me sangra por dentro.

Aqui e agora, eu existo. Resisto e insisto

Eu estou aqui. Eu existo. Da maneira que eu sou. Pouquíssimas pessoas me conhecem e me aceitam dessa forma. Algumas na família, uma amiga que sempre foi meu suporte quando trabalhamos juntas. Eu sequer tinha o diagnóstico. Outra amiga pós diagnóstico. Meus quatro afilhados: três na área da comunicação e uma na área policial. Minha filha, certamente. E um homem que, a despeito dos nãos da própria vida, ousou me amar.

Essas pessoas, sim, conhecem minhas limitações. E minha luz. A elas, eu me entreguei plena. Eu ofereci o meu melhor. E é por elas, e por você que me lê, que eu sigo. Não vou desistir jamais. Afinal, crescer dói. Mas eu existo e insisto.

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Jornalista e relações públicas, diagnosticada com autismo, autora dos livros "Minha Vida de Trás pra Frente", "Dez Anos Depois", "Camaleônicos" e "Autismo no Feminino", mantém o site "O Mundo Autista" no Portal UAI e o canal do YouTube "Mundo Autista".

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