1 de junho de 2022

Tempo de Leitura: 4 minutos

Temos mesmo menos meninas diagnosticadas com Transtorno do Espectro Autista?

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) feminino tem sido constantemente colocado em pauta. Dados do Centers for Disease Control and Prevention (CDC), nos Estados Unidos, divulgados em de dezembro de 2021, apontam que 1 mulher a cada 4,2 homens está no espectro autista. Pesquisas internacionais anteriores mostravam dados semelhantes, com taxas de detecção de autismo de 3 a 4 vezes maiores entre os homens. Porém, esses não são totalmente condizentes com a realidade observada na prática clínica. 

O modelo genético que melhor explica a ocorrência do TEA, conhecido como “modelo de copo”, seria uma provável explicação para a maior prevalência no sexo masculino, uma vez que meninas, para estarem no espectro, precisariam de mais variantes genéticas associadas ou não a fatores ambientais para atingir o “limiar do copo”.

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Mas, ainda assim, acredita-se que essa discrepância na prevalência esteja associada, em grande parte, a subdiagnósticos, especialmente no caso de meninas/mulheres que se encontram no espectro nível 1 de suporte, levando em conta que o diagnóstico no público feminino é mais desafiador, por diferentes motivos.

Particularidades do comportamento e funcionamento cerebral feminino

O funcionamento cerebral feminino apresenta diferenças, mesmo que sutis, em sua arquitetura e atividade, sendo importante destacar a maior densidade de neurônios em áreas relacionadas à linguagem, associada à maior habilidade para imitação, habilidades sociais, comunicativas e empatia. Isso prevê menores dificuldades para relações sociais, interesses restritos que podem passar despercebidos ou não serem considerados “atípicos”, menor tendência a comportamentos-problema (agressividade, inquietude e comportamentos disruptivos em geral) e maior uso de estratégias de camuflagem social.

Em contraste à externalização, a internalização de dificuldades emocionais é mais comumente observada entre as mulheres autistas quando comparadas aos homens com TEA, o que as torna mais suscetíveis a quadros de ansiedade, depressão, automutilação, distúrbios de alimentação. Esse é um ponto que pode de duas maneiras interferir no diagnóstico assertivo de TEA: pode contribuir para que as meninas/mulheres recebam um diagnóstico apenas da condição comórbida e, por outro lado, pode reforçar o preconceito de  gênero no reconhecimento do autismo (já que as expressões comportamentais dos homens com TEA tendem a chamar mais a atenção do que as das mulheres).

Associa-se a essas particularidades o fato de a sociedade esperar comportamentos distintos entre meninos e meninas. Uma menina que apresente alguma dificuldade na comunicação e interação social, por exemplo, que não goste de toque, beijos ou brincar com outras crianças, pode ser considerada somente uma criança mais tímida. Por outro lado, meninos que se comportam de maneira mais retraída chamam mais a atenção de todos.

Tudo isso contribui para que características mais sutis presentes em algumas meninas fiquem mascaradas, atrasando seus diagnósticos. 

Critérios diagnósticos e características subjacentes do TEA feminino

O diagnóstico no TEA é clínico, realizado por meio da observação dos comportamentos e do desenvolvimento do indivíduo nos mais diversos contextos e ambientes, o que impacta em estudos de prevalência. Soma-se a isso o fato de os marcadores comportamentais utilizados como critérios diagnósticos serem, em maioria, estabelecidos com base nas populações predominantemente masculinas previamente identificadas como autistas. Dessa forma, acredita-se que as mulheres podem ter menor probabilidade de atenderem a esses critérios, já que a apresentação do TEA mais comumente observada entre o público feminino envolve características autistas subjacentes (que não se manifestam claramente) semelhantes às descritas nos critérios diagnósticos atuais.

Maior tendência ao uso de camuflagem social 

Camuflagem social refere-se a um conjunto de estratégias desenvolvidas pelo próprio indivíduo com TEA a fim de “camuflar”/“mascarar” comportamentos característicos do espectro autista, com o objetivo de se adaptar melhor e atender às expectativas dos mais diversos contextos sociais. 

Apesar de pode ser adotada por ambos os sexos, há um predomínio em meninas/mulheres sem deficiência intelectual. 

A camuflagem social pode se apresentar de três maneiras: compensação (prevê copiar comportamentos e falas, criar um roteiro de uma possível interação social etc); mascaramento (monitoração das próprias expressões corporais e faciais, a fim de não demonstrar que a interação social está exigindo um esforço desgastante) e assimilação (que prevê atuação em determinado contexto social, por meio de estratégias, comportamentos e até mesmo de outras pessoas, para passar a impressão de que a interação social está sendo feita). 

A camuflagem social no contexto do TEA exige um esforço cognitivo considerável, gerando constantemente exaustão emocional e até física, impactando frequentemente em sofrimento psíquico. Sendo um fenômeno ainda pouco reconhecido por profissionais de saúde, parece relacionar-se a uma menor frequência de diagnósticos de TEA e a um número maior de diagnósticos errôneos.

Conclusões

Apesar das prováveis diferenças na apresentação da sintomatologia, os critérios diagnósticos para o TEA são os mesmos para ambos os sexos. Identificar o autismo nível 1 de suporte, tanto em meninas como em meninos, é naturalmente mais desafiador e pode ficar ainda mais complexo no caso de meninas se pensarmos em todas essas particularidades. Já as meninas com TEA nível 2 e 3 são diagnosticadas mais precocemente, pois apresentam déficits e excessos comportamentais mais expressivos. 

Por tudo isso, um dos grandes desafios hoje ainda é treinar o olhar dos profissionais da saúde que acompanham a criança, assim como orientar pais, familiares, educadores e a sociedade em geral para que alguns sinais mais sutis não sejam ignorados e/ou justificados como “comportamentos esperados entre meninas ou meninos”. 

Referências 

Jacquemont, S., Coe, B. P., Hersch, M., Duyzend, M. H., Krumm, N., Bergmann, S., … & Eichler, E. E. (2014). A higher mutational burden in females supports a “female protective model” in neurodevelopmental disorders. The American Journal of Human Genetics, 94(3), 415-425. 

Maenner, M. J., Shaw, K. A., & Baio, J. (2020). Prevalence of autism spectrum disorder among children aged 8 years – Autism and Developmental Disabilities Monitoring Network, 11 sites, United States, 2016. MMWR Surveillance Summaries, 69(4), 1. 

Mandy, W., Pellicano, L., St Pourcain, B., Skuse, D., & Heron, J. (2018). The development of autistic social traits across childhood and adolescence in males and females. Journal of Child Psychology and Psychiatry, 59(11), 1143–1151.

Hiller, R. M., Young, R. L., & Weber, N. (2014). Sex differences in autism spectrum disorder based on DSM-5 criteria: Evidence from clinician and teacher reporting. Journal of Abnormal Child Psychology, 42(8), 1381–1393. 

Hoang, N., Cytrynbaum, C., & Scherer, S. W. (2018). Communicating complex genomic information: A counselling approach derived from research experience with Autism Spectrum Disorder. Patient education and counseling101(2), 352-361.

Hull, L., Petrides, K. V., & Mandy, W. (2020). The female autism phenotype and camouflaging: A narrative review. Review Journal of Autism and Developmental Disorders7(4), 306-317.

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Médica neuropediatra, especialista em Transtorno do Espectro do Autismo; autora do livro “Compreender e acolher Transtorno do Espectro Autista na infância e adolescência”, mestranda em análise do comportamento, conselheira profissional da Onda-Autismo, coordenadora e professora de pós-graduações e madrinha do projeto social Capacitar para Cuidar, em Angola.

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