23 de outubro de 2025

Tempo de Leitura: 3 minutos

Nos últimos meses, o termo “autismo profundo” tem circulado intensamente em discussões médicas e redes sociais. Dessa forma, reacende um debate crucial: ao tentar classificar, corremos o risco de excluir justamente quem mais precisa de visibilidade e suporte? Como mulher autista e mentora de mães com filhos em diferentes níveis de suporte, enxergo essa questão sob uma ótica profundamente pessoal: a da vivência. É por isso que proponho uma reflexão mais empática e humana.

O que significa “autismo profundo” e de onde vem essa ideia?

A expressão “autismo profundo” ganhou popularidade após um relatório da The Lancet Commission em 2021, que a sugeriu para descrever pessoas não verbais e com comprometimento cognitivo acentuado. Assim, a intenção era louvável: dar mais visibilidade a indivíduos com deficiências ditas mais severas. Afinal, eles frequentemente são marginalizados em pesquisas e políticas públicas.

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No entanto, essa nova classificação carrega um risco considerável: o de reabrir a perigosa divisão entre “autistas de verdade” e “autistas leves”.

O perigo quando o rótulo se transforma em muro

Por décadas, o autismo foi estereotipado como uma condição unicamente “grave”. Isso levou muitas pessoas que hoje se reconhecem no espectro a serem ignoradas, mal diagnosticadas ou rotuladas como “estranhas”. Então, o conceito de espectro autista foi um avanço poderoso. Isso porque ele criou um “guarda-chuva” que celebra a vasta diversidade de ser, sentir e se comunicar.

O termo “autismo profundo”, infelizmente, ameaça reconstruir esses mesmos muros que o conceito de espectro se esforçou para derrubar. Afinal, quando usamos a palavra “profundo”, mesmo que inconscientemente, sugerimos a existência de um “superficial”. Mas o autismo não tem profundidade; ele tem variações nas necessidades de suporte.

E se muitas pessoas com manifestações mais sutis do autismo hoje têm posicionamentos mais agressivos ou reativos, isso é apenas um reflexo de toda a dor que sofreram durante toda a vida, inclusive pela exclusão do próprio espectro autista por muito tempo. Afinal, muitos não tiveram acesso a diagnóstico adequado, acessibilidade nem a compreensão. Alguns até foram julgados como “loucos” e sofreram as implicações sociais disso, que vão desde a internações em clínicas a associação de seus comportamentos com desvios de caráter que prejudicaram suas possibilidades de sobrevivência. Exemplos disso são a busca por emprego ou mesmo por benefícios assistenciais, já que muitos nem dão conta de lutar pelo que precisam, e não tem ninguém que dê conta de fazer isso por eles. Isso se estende até mesmo a autistas profissionalmente bem-sucedidos, mas com dificuldades diversas na vida cotidiana.

A maior prova de nossa vulnerabilidade é que até médicos e mães de autistas parecem não acreditar em muitas de nossas dificuldades, e não conseguem compreender nossa busca por respeito e validação como algo que não seja ‘romantizar o autismo’.

A dor silenciosa das mães

Mães de autistas com altas necessidades de suporte muitas vezes vivem em um espaço de silêncio e exaustão. Elas raramente se veem nas narrativas de “autistas bem-sucedidos”, mas também rejeitam a ideia de serem vistas com pena, como se fossem menos do que outras mães. Além disso, elas amam seus filhos e lutam por cada pequena conquista, cada sorriso, cada olhar.

Então, quando o debate público categoriza seus filhos como “autistas profundos”, seus filhos estão sendo desvalorizados, vistos como “menos”. E isso é doloroso. Imagino que nenhuma mãe deseje que seu filho seja categorizado como uma humanidade à parte. E a palavra ‘profundo’ tem uma conotação de subjetividade, de adjetivo. Então, ela não descreve as dificuldades da pessoa autista, ela a categoriza como um adjetivo.

Autismo profundo: O problema não é o nome, é o que ele reforça

Palavras, por si só, são apenas um conjunto fonético e semântico. Mas elas carregam conotações, significados, visões de mundo, estigmas e até preconceitos. Além disso, linguisticamente, escrever a história também é criá-la. Assim, a repetição de uma palavra pode trazer uma validação de tudo que ela não engloba nem valida, mas vem com ela nesse todo de interpretações socioculturais.

A intenção de diferenciar perfis pode ser científica e prática. Contudo, quando esses rótulos chegam à sociedade, adquirem um peso simbólico e emocional imenso. Portanto, termos como “leve”, “moderado”, “profundo” ou “grave” podem, inadvertidamente, reforçar uma hierarquia de valor entre pessoas autistas. Isso não é inclusão; é uma forma sutil de capacitismo.

O verdadeiro caminho não é dividir o espectro, mas sim aprimorar o suporte individualizado. Assim, precisamos de novas categorias e de políticas públicas que reconheçam as diversas necessidades, sem apagar a existência de ninguém.

O que realmente precisamos discutir

O debate em torno do “autismo profundo” destaca um ponto crucial: pessoas com maiores necessidades de suporte estão, de fato, sendo negligenciadas em conversas, pesquisas e representações. Mas a solução não é a separação; é ouvir mais. É dar voz às mães, cuidadores e buscar se comunicar com as próprias pessoas com deficiências intelectuais ou prejuízos na fala. Para isso, é crucial o respeito a suas formas únicas de comunicação. Afinal, a luta é uma só: visibilidade com dignidade.

Conclusão: Mais Pontes, menos rótulos

Dividir o espectro é um retrocesso disfarçado de precisão. Enquanto o mundo discute “níveis” e “profundidades”, milhares de pessoas autistas e suas famílias continuam buscando um olhar simples: o de serem vistas como parte da mesma humanidade.

É por isso que devemos continuar falando, ouvindo e ensinando:

  • O autismo é diverso.
  • Cada pessoa é única.
  • E toda vida merece ser compreendida – não classificada.

(Originalmente publicado em O Mundo Autista, no portal UAI)

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Jornalista, escritora, apresentadora, pesquisadora, 24 anos, diagnosticada autista aos 11, autora de oito livros, mantém o site O Mundo Autista no portal UAI e o canal do YouTube Mundo Autista.

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