14 de outubro de 2025

Tempo de Leitura: 3 minutos

Um artigo publicado em 01.out.2025 pelo jornal The New York Times reacendeu um antigo e delicado debate: o de dividir o espectro do autismo em duas categorias. A proposta, defendida por alguns grupos de pais e pesquisadores norte-americanos, sugere a criação de um diagnóstico separado chamado “autismo profundo” (em inglês: profound autism), para diferenciar os casos com maiores necessidades de suporte — especialmente aqueles que envolvem ausência de fala, deficiência intelectual e dependência integral de cuidados.

O texto, assinado pela jornalista Yuhan Liu, destaca o ponto de vista de famílias que se sentem deixadas à margem desde que o conceito de espectro foi ampliado, nas últimas décadas, para incluir pessoas com níveis muito distintos de funcionamento. Essa expansão, argumentam, teria diluído a compreensão pública sobre o autismo e desviado investimentos científicos das formas mais graves da condição. O artigo cita Alison Singer, presidente da Autism Science Foundation, que defende que “a ideia de que Elon Musk tem o mesmo diagnóstico que minha filha é absurda”.

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História

Desde o final dos anos 1990, quando o número de diagnósticos começou a crescer, o entendimento do autismo passou por transformações profundas. A quarta versão, de 1994, do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-4) incluiu a Síndrome de Asperger como parte do espectro — algo que foi unificado em 2013, na quinta edição (DSM-5), sob o termo transtorno do espectro do autismo (TEA), com três níveis de suporte. Essa mudança ampliou significativamente o número de diagnósticos, incluindo pessoas que antes seriam consideradas apenas com dificuldades sociais, e também deu força ao movimento da neurodiversidade, que entende o autismo como uma variação humana, e não uma doença a ser curada.

A ampliação do espectro, porém, também trouxe tensões. Pais e cuidadores de pessoas com autismo severo relatam que o discurso da neurodiversidade muitas vezes não contempla suas realidades. Grupos como o National Council on Severe Autism afirmam que a representatividade das pessoas com deficiências mais graves diminuiu na pesquisa e nas políticas públicas. Uma pesquisa citada pelo The New York Times mostrou que 80% das famílias com filhos com autismo severo ouviram que eles eram “muito disruptivos” até mesmo para programas especializados.

De outro lado, ativistas autistas e defensores do conceito de espectro unificado veem o risco de retrocesso. Para eles, separar o diagnóstico poderia reforçar estigmas e excluir novamente quem já lutou para ser reconhecido. A médica irlandesa Mary Doherty, fundadora da Autistic Doctors International, argumentou no artigo que “não conheço nenhum autista que apoie essa divisão”. Pesquisadores como Ari Ne’eman, da Universidade Harvard, também alertam que tal cisão criaria fronteiras artificiais em uma condição naturalmente diversa.

Autismo profundo: 1%

Especialistas em neurociência, contudo, concordam que é preciso olhar com mais atenção para as pessoas com autismo de suporte elevado, sem romper o conceito de espectro. O neurocientista brasileiro Dr. Alysson Muotri, professor da Universidade da Califórnia em San Diego (EUA), lembrou que os dados populacionais não indicam aumento dessa forma mais grave (afirmação, aliás, que ele me fez na reportagem sobre a divulgação do estudo de prevalência do CDC, em abril deste ano). “O autismo sindrômico, que representa boa parte do autismo nível 3 de suporte, o chamado ‘autismo profundo’, continua sendo menos prevalente (ou mais raro) e não tem aumentado com o tempo, continuando a ter uma prevalência próxima de 1% da população”, afirmou Dr. Muotri, que é cofundador da startup Tismoo, especializada em saúde digital para autistas e outras neurodivergências.

Nos Estados Unidos, o debate ganhou força também por causa de declarações recentes do secretário de Saúde, Robert F. Kennedy Jr., que classificou o aumento de diagnósticos como “epidemia” e relacionou o autismo a vacinas e ao uso de paracetamol — alegações rejeitadas pela comunidade científica. O contexto político e o envolvimento do próprio presidente norte-americano amplificaram as discussões sobre o que realmente explica a alta prevalência atual: se o autismo está, de fato, mais comum ou apenas mais reconhecido.

Entre a ampliação da compreensão do autismo e o risco de fragmentar o conceito, o consenso parece distante. A discussão reflete não apenas diferentes experiências, mas também disputas sobre representatividade, pesquisa e financiamento. Mais do que uma questão médica, o debate sobre dividir ou não o espectro escancara o desafio ético e social de compreender, incluir e apoiar pessoas com realidades muito distintas dentro do mesmo diagnóstico.

Para ler a reportagem original (em inglês) — “”— publicada pelo The New York Times, disponível apenas para assinantes, acesse neste link ou, para não assinante, leina a versão arquivada pelo Web Archive, neste link.

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Editor-chefe da Revista Autismo, jornalista, empreendedor.

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