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20 anos depois, data continua a ser comemorada em todo o mundo
Em meados de 2004, autistas em um fórum do Reino Unido chamado Aspies For Freedom (AFF) discutiam a necessidade de existir uma data para celebrar o autismo. Àquela altura, ainda não existia o Dia Mundial do Autismo, que só surgiria em 2007, embora abril já fosse o mês relacionado ao autismo nos Estados Unidos, enquanto, no Reino Unido, era outubro.
Vinte anos depois, o Dia do Orgulho Autista — celebrado todo 18 de junho com o objetivo de mostrar o lado positivo do autismo — continua presente em eventos oficiais e publicações nas redes sociais, ao passo que agrega adeptos e motiva desafetos. Mas o primeiro dia dessa comemoração, em 2005, reuniu histórias em todo o mundo, incluindo o Brasil, que hoje estão esquecidas ou pouco lembradas.
Por que 18 de junho?
O dia 18 de junho foi escolhido por ser o aniversário do integrante mais jovem do grupo fundador do fórum. A escolha não foi universalmente bem aceita entre todos os usuários e, em uma publicação no fórum, 61% votaram para que a data fosse em outro dia. Uma das principais críticas era a associação ao que se chamava, na época, de “orgulho gay”.
Amy, uma das administradoras na época, contra-argumentou essas críticas. “Não é o Dia do Orgulho Gay. O Dia do Orgulho Gay não tem um dia fixo todos os anos. Se for realizado durante a ‘semana oficial’ [do Dia do Autismo] estabelecida por neurotípicos, isso será mais prejudicial do que benéfico. Além disso, essas semanas e meses também são diferentes em outros países! O tipo de cobertura midiática durante esse período é frequentemente negativo, com uma tendência extrema para ajudar crianças muito pequenas com autismo”, argumentou.
Apesar de a AFF não ser uma associação no sentido formal, reunia autistas de diferentes países e, assim, conquistou interesse no ambiente virtual. Em 2006, o fórum já reunia mais de mil usuários ativos e possuía mais de 30 mil publicações. Em cada país, internautas autistas começaram a divulgar o Dia do Orgulho Autista, seja em ações presenciais com cartazes, seja com a produção de textos para a imprensa.
A primeira menção ao Dia do Orgulho Autista em um veículo de larga circulação no Brasil se deu no jornal Folha de S.Paulo. O jornalista Luiz Caversan, no dia 6.jun.2005, publicou o texto ‘Viva a diferença’. Nele, o autor argumentava que a data era “uma forma de contrapor estigma e respeito ao descaso, ao preconceito, à hostilidade ou ao desprezo que a sociedade moderna reserva para o que é diferente, diverso e, assim, do seu ponto de vista, incômodo”.
Data dos autistas, mas celebrada pelos pais
O artigo de Caversan foi inspirado em um manifesto produzido por Argemiro Garcia, um pai de autista, de Salvador (BA), para o portal Anjos de Barro. Garcia traduzia textos de portais de notícias e fóruns autistas do exterior e escreveu um texto para um panfleto. O Grupo de Apoio ao Indivíduo Autista (GAIA), de São José dos Campos (SP), chegou a produzir um panfleto para a data. Mas, em e-mail enviado pela associação à Revista Autismo, a organização informou que o documento não chegou a ser distribuído na cidade.
O texto publicado na Folha ressoou em outros estados. Em Brasília (DF), o policial rodoviário Fernando Cotta, de 57 anos, leu o artigo e viu a necessidade de produzir algo para o Dia do Orgulho Autista na capital federal. Entre os familiares participantes estavam Ana Lúcia Nascimento, Maria Lúcia Gonçalves, Alexandra Capone e Elaine Gonçalves, que confeccionaram mais de mil panfletos financiados de forma independente após a desistência de um patrocinador. “Foi tudo muito artesanal, mas a gente estava determinado a fazer”, lembra Cotta.

Entrega de panfletos no Dia do Orgulho Autista de 2005. Foto: Acervo pessoal / Movimento Orgulho Autista Brasil
A entrega dos panfletos ocorreu por meio de uma blitz educativa no trecho da BR-040/050, na saída sentido Belo Horizonte, com o apoio da Polícia Rodoviária Federal e do Sindicato dos Policiais Rodoviários Federais. Em vez de uma fiscalização comum, os carros paravam e os condutores recebiam informações sobre o autismo, entregues pelos familiares vestidos com camisetas alusivas à data. Muitos motoristas reconheceram características descritas no panfleto em parentes ou conhecidos e relataram suas experiências. Alguns, no entanto, demonstraram desconhecimento ou até usaram termos pejorativos. “Teve um motorista que falou: ‘Ah, conheço um doidinho assim lá na minha rua’”, lamentou Fernando Cotta..
Após o sucesso na rodovia, os voluntários seguiram para o Estádio Mané Garrincha, onde ocorria uma partida do campeonato brasileiro entre Brasiliense e Corinthians. Lá, dividiram-se em pequenos grupos para distribuir os panfletos ao público que chegava ao jogo. Nos dias seguintes, os panfletos restantes foram distribuídos em shoppings e outros espaços de Brasília. Assim, nascia a primeira grande ação do que, mais tarde, se tornaria o Movimento Orgulho Autista Brasil (MOAB)
Depois da ação, Fernando enviou uma mensagem para a AFF, que foi divulgada no fórum e ajudou a consolidar aquela iniciativa como a principal atividade relacionada ao Dia do Orgulho Autista no Brasil. Ao que tudo indica, nenhuma outra ação de proporções semelhantes ocorreu na mesma data. O jornal Correio do Povo, de Porto Alegre (RS), chegou a noticiar, no dia 18, que a Associação dos Pais e Amigos dos Autistas do Rio Grande do Sul (AMA/RS) realizaria uma panfletagem no dia 19, mas sem fornecer maiores detalhes.
Na ausência de autistas, o que originalmente era um movimento para se orgulhar de ser autista transformou-se em um orgulho pelos filhos. “Tem gente que acusa a gente, hoje, de se apropriar indevidamente da data. Nosso entendimento não é esse”, defendeu Cotta. Por conta dessa participação majoritária de familiares de autistas, há divergências sobre quais ações devem ser consideradas válidas na celebração da data. Até hoje, veículos de imprensa frequentemente divulgam que o Brasil realizou o maior evento relacionado ao Dia do Orgulho Autista no mundo. Enquanto isso, alguns textos internacionais ocasionalmente destacam um evento menor ocorrido em Seattle, nos Estados Unidos, também divulgado nos fóruns da AFF.

Integrantes do MOAB no Dia do Orgulho Autista de 2005. Foto: Acervo pessoal / Movimento Orgulho Autista Brasil
De volta para o futuro
A comunidade do autismo transformou-se ao longo dos anos, inclusive no Brasil. Na década de 2010, um número mais expressivo de autistas adultos passou a participar do debate sobre direitos, políticas públicas e inclusão no país. Como resultado, o Dia do Orgulho Autista não apenas permaneceu no calendário nacional, mas também expandiu sua popularidade.
No entanto, 20 anos depois, essa popularidade reflete o mesmo propósito da Aspies For Freedom ao criar uma data voltada para os autistas? João Victor Ipirajá, 24 anos, estudante de Engenharia da Computação no Instituto Federal do Ceará (IFCE), autista e membro da Casa da Esperança, em Fortaleza (CE), acredita que não, especialmente devido à diversidade da comunidade autista. Mesmo assim, ele considera que as transformações exigem tempo.
“Além de promover a conscientização, o orgulho autista representa uma oportunidade para reverter os retrocessos que cedemos em nome de uma compulsão por normalidade. Trata-se de incentivar as pessoas a reconhecerem o valor de nossas necessidades, que vão muito além da mera aceitação parcial, pois são pilares essenciais para vivermos em harmonia”, argumentou.
Entre as transformações vividas pela comunidade está o crescente número de familiares de autistas que também se descobrem autistas. Esse é o caso de Juliana Fortes, 55 anos, que se reconheceu autista já atuando no movimento social, inicialmente como mãe, após uma infância marcada pela perda dos pais. Ela fundou o Instituto Psicossocial Renascer do Autismo (Ipra), cujo lançamento ocorreu no Dia do Orgulho Autista, em 2016.
Juliana discorda de familiares de autistas que dizem amar seus filhos, mas odiar o autismo. “Eu me orgulho do meu filho e me orgulho do pertencimento. Meu filho tem 14 anos e, até os 7, era não-verbal. Um dia, na saída da escola, ele me disse: ‘Mãe, tenho vergonha de ser autista. Eu quero ser uma pessoa normal’. Isso me chocou muito. Eu disse a ele que ser autista é normal”, contou.
Ela também relembra que, na infância, tinha crises de autoagressão, mas que descobrir seu próprio autismo transformou sua vida. “Hoje, eu tenho orgulho de ser quem sou, pelo meu pertencimento, por entender minha essência humana, e tento passar isso para meu filho. O autismo me reconectou com meu eu e me trouxe propósito de vida. Hoje, meu propósito é atuar no movimento, ajudando famílias a viverem de forma mais leve, sem culpa e sem julgamento”, concluiu.