26 de junho de 2024

Tempo de Leitura: 3 minutos

Eu sempre quis escrever sobre autismo e empregadas domésticas. Afinal, pela observação empírica das relações que se estabeleceram aqui em casa entre mim, mamãe e nossas ajudantes, esses relacionamentos sempre foram muito diferentes do que acontecia nas casas de outras famílias. E sim, isso se deve inteiramente às moças características autistas.

Relação patrão e empregado é muito diferente em casa de família

Por exemplo, mamãe sempre foi uma excelente líder de times. Então, enquanto esteve como assessora-chefe do Instituto Nacional do Seguro Social de Minas Gerais (INSS-MG), chegou a comandar com sucesso dezenas de profissionais que respondiam a ela direta ou indiretamente.

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Porém, na intimidade do lar, ela sempre teve desafios profundos em se comunicar com nossos funcionários.  Isso porque ela manifestava uma extrema dificuldade em evidenciar as percepções sobre o que não estava dando certo no trabalho de uma maneira assertiva. Então, ela acabava deixando muitas vezes de dizer o que a desagradava. Com isso, a pessoa, que usualmente era uma empregada doméstica, não apenas fazia o que queria e muitas vezes não correspondia na totalidade às tarefas que foi contratada.

Relacionamento entre pessoas autistas, o autismo e empregadas domésticas

Além disso, o vínculo que a gente criava com essas funcionárias era muito intenso. Isso era muito diferente, por exemplo, de pessoas que dizem que a empregada faz parte da família de uma maneira até questionável e questionada criticamente, como no caso do filme com a Regina Casé, “Que Horas Ela Volta?”.

No nosso caso, não havia separação tácita entre os níveis de autoridade e cobrança entre mim e as funcionárias, por exemplo. Não é exagero dizer que, certas vezes, elas ficavam tão à vontade que a gente começou a trabalhar para elas. Como no caso em que uma faxineira ficava chateada quando minha mãe não conseguia preparar o café da manhã para ela. Também, esse envolvimento emocional não raro revela-se prejudicial à relação entre patrão e empregado. Era como se, em alguns casos, elas manipulassem a gente pelo coração.

Sobre autismo e empregadas domésticas

Havia um exemplo de funcionária que era mestre em fazer isso. Ela chegou a roubar coisas lá de casa, mas a mamãe a perdoou porque queria apostar no bom coração dela. E chegou a pagar terapeutas e tratamentos para ela, que tinha problemas físicos e mentais relacionados à obesidade mórbida. Eu gostava muito dessa empregada e babá, porque ela me levava para fazer tudo o que mamãe, como autista, não dava conta. A gente ia às lojas e ao cinema juntas, sempre. Porém, com o tempo, descobrimos que ela era estelionatária e falsificava documentos. Mesmo assim, mamãe demorou bastante para demiti-la.

Apesar disso, essa doçura no envolvimento com faxineiras e empregadas domésticas teve seus ótimos ganhos. Assim, conhecemos pessoas maravilhosas, como a Lucimar, que trabalhou conosco por dois anos, e a Ana Paula, que tempos depois tornou-se uma mulher muito bem-sucedida nos campos amoroso e profissional. Inclusive, depois de ter os dois filhos, ela ligou para minha mãe e pediu desculpas por ter me tratado possivelmente mal quando era mais nova, e disse que jamais perdoaria se alguém fizesse isso com os filhos dela. Mal ela sabia que o lugar de uma das pessoas inesquecíveis e com marcas positivas em minha trajetória está assegurado para ela, que se tornou uma grande amiga.

Empregada doméstica como a melhor amiga?

Agora, eu e minha mãe estamos devidamente diagnosticadas, com acompanhamento médico e psicológico para essas questões pertinentes ao TEA que moldam nosso comportamento perante às situações. Porém, se você apostar que mudamos o nosso jeito com nossas funcionárias, você está enganado. Quando a pessoa tem os mesmos valores e princípios que nós, vale muito a pena nos entregarmos de coração a uma amizade com nossas funcionárias.

Inclusive, lembro-me do filme “Crash: No Limite”, vencedor da categoria principal no Oscar 2006. Neste longa-metragem, a atriz Sandra Bullock (ganhadora do Oscar por “Um Sonho Possível“, três anos depois) interpreta uma socialite, esposa de um promotor que leva uma vida solitária. E percebe, após uma queda, que a empregada é a sua melhor amiga. Afinal, enquanto seus colegas socialite recusam auxiliá-la para fazerem massagens, o vínculo com a empregada doméstica se evidencia o mais forte e genuíno. Isso não é nada incomum em nossa trajetória.

Final feliz para a história

Portanto, sou imensamente grata porque eu e mamãe encontramos a nossa colaboradora de Belo Horizonte, Simone. Ela é uma mulher com o mesmo jeito carinhoso e afetuoso que nós. E sabemos reconhecer que isso é raro. Assim, estamos sempre torcendo pela família de uma pela outra e procurando sempre ser a melhor presença umas nas vidas das outras. Além disso, o bom-humor que salvou a relação entre mim e mamãe nos tempos mais tempestuosos também está presente em nosso cotidiano com a Simone. Final feliz para essa história!

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Jornalista, escritora, apresentadora, pesquisadora, 24 anos, diagnosticada autista aos 11, autora de oito livros, mantém o site O Mundo Autista no portal UAI e o canal do YouTube Mundo Autista.

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