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“Não está tão frio”, “você está sendo exagerado” e “isso é frescura” são apenas algumas das frases dolorosamente comuns e familiares para boa parte das pessoas autistas. Tais frases podem ser ditas por familiares, colegas da escola e do trabalho, professores, terapeutas e quaisquer pessoas que nos ouçam expressar desconforto com alguma situação e geram marcas em quem nós somos. Tanto ouvimos que somos exagerados, frescos e mimados que acabamos acreditando que isso é verdade. E quando não são os outros tentando nos “consertar”, somos nós que buscamos uma forma de sermos menos estranhos, menos exagerados, e nos colocamos em situações cada vez mais dolorosas enquanto tentamos mudar quem nós somos.
O diagnóstico tardio pode trazer novas possibilidades de interpretação de sua história de vida que permitem afastar-se de um sentimento de culpa e de fracasso pessoal por não conseguir ser como os outros e passar a perdoar-se, compreendendo que não é um defeito ou uma falha ter uma forma diferente de ser, de agir e de estar no mundo. Enfatizo aqui que essa é uma possibilidade, não uma certeza; infelizmente, para muitos o diagnóstico tardio torna-se um novo momento de traumas e violências. Mas esse momento pode contribuir para que a pessoa autista possa dizer que não, não é exagero, não é frescura, não é preguiça.
Mas quanto mais estudo sobre o autismo, mais tenho certeza de que precisamos dar um passo além nesse processo. Porque, nesse momento, é comum que a pessoa autista entenda que ela não é exagerada, mas que seu corpo é exagerado e tem reações desproporcionais ao ambiente. Passaram-se muitas décadas desde que o autismo foi clinicamente descrito e categorizado dentro dos manuais médicos até que as pessoas autistas pudessem falar por si mesmas sobre quem são e fossem ouvidas pela sociedade, mas nossos corpos autistas ainda são compreendidos como no século passado: exagerados e de reações desproporcionais, porque a referência, o padrão a ser seguido continua a ser o corpo não autista. Há uma cisão em como compreendemos a mente e o corpo autistas, como se fossem entidades completamente distintas e separadas, mas a realidade é que a mente e o corpo formam um todo único, que não pode ser compreendido de forma isolada.
Assim, quando a criança autista se recusa a comer uma série de alimentos, buscam-se formas de levar essa criança a aceitar tantos alimentos quanto seus colegas não autistas, em processos que podem ser desde incrivelmente violentos e traumáticos até muito respeitosos e que busquem compreender a singularidade daquela criança. Mas não se costuma questionar o que leva a essa recusa. É raro que se investiguem profundamente as questões gastrointestinais e alérgicas que são tão frequentes em pessoas autistas e mais raro ainda é que alguém faça a relação entre essas questões e a recusa alimentar. Daí o que falo sobre corpo e mente constituírem um todo único: se há uma maior vulnerabilidade a elementos externos, é absolutamente coerente que se rejeite e tenha-se receio diante de alimentos e elementos desconhecidos, além de uma sensibilidade mais apurada em relação aos alimentos consumidos, porque torna-se primordial impedir ou ao menos reduzir a ingestão de alimentos que possam desencadear reações adversas. Todas essas possibilidades são desconsideradas porque se acredita que o “problema” da pessoa autista é que ela possui reações exageradas e aí não se cogitam questões que possam justificar essa sensibilidade exacerbada.
Acredito que é essencial pararmos de lutar contra os corpos autistas e passar a ouvi-los e compreendê-los, reconhecendo as limitações de nosso conhecimento – tanto individual quanto de nossa sociedade – para aceitar que não conhecermos a causa de um determinado comportamento, de uma determinada reação, não significa que não existe uma causa, uma justificativa.