23 de dezembro de 2025

Tempo de Leitura: 4 minutos

Querida Blue,

Eu nasci em 1971, em uma época em que pouco se falava sobre autismo no Brasil. Em 1973, fui diagnosticada com transtorno hipercinético. Anos depois, o diagnóstico mudou: autismo. Na época, os médicos disseram à minha mãe que eu jamais seria alfabetizada. Recebi medicamentos como Gardenal e Neuleptil para controlar minha hiperatividade. Hoje, acredito que também apresentava sinais de TOD (transtorno opositivo desafiador), e talvez eu ainda carregue um pouco disso, apesar de nunca ter tido esse diagnóstico.

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Minha mãe, muito determinada, me criou como uma criança típica. Fui para a escola, mas o ambiente escolar era muito difícil para mim. Eu não conseguia ficar parada, fugia da sala de aula para passear pelos corredores. Os livros não faziam sentido, eram confusos, o ambiente da escola era assustador e me fazia sentir triste e perdida. O que mais me machucava era não ter amigos, estar sempre sozinha nos recreios, sem entender por que ninguém queria brincar comigo.

O meu refúgio era um terreno abandonado em frente à minha casa. Lá havia muitas árvores, era meu reino encantado, onde eu podia ser eu mesma. Corria descalça, fazia os movimentos que hoje chamam de estereotipias, sem que ninguém me repreendesse. Subia em árvores e comia ameixas verdes. Era o único lugar onde eu sentia liberdade e felicidade, longe dos olhares e dos julgamentos.

Mas, como sabemos, a vida nem sempre é justa. Aos 6 anos, descobri que adultos podem ser cruéis, e essa foi a parte mais dolorosa da minha vida. Naquele terreno, morava uma família com quatro filhos. Eles eram meus únicos amigos, crianças menores do que eu, e eu amava brincar com elas. Até que um dia, o pai dessas crianças me chamou para um quarto e mandou os outros saírem. Eu achava que era apenas uma brincadeira, mas estava errada. O que aconteceu naquela tarde mudou a minha vida para sempre.

Os abusos continuaram por cerca de quatro anos. Eu aprendi, ainda criança, a me defender sozinha, porque quando contei, ninguém acreditou em mim. Eu era uma criança autista e diferente, e as pessoas viam em mim apenas uma menina “difícil”, “malcriada” e “hiperativa”. A minha palavra, de uma criança rotulada, não tinha valor diante da palavra de um adulto. Era como se a minha voz não existisse.

Muitas vezes, as crianças autistas não têm seu discurso validado devido ao estigma e aos preconceitos que enfrentam. A sociedade frequentemente desqualifica seus relatos e sentimentos. Isso cria um ambiente perigoso, onde seus pedidos de ajuda são ignorados. Além disso, o agressor costuma ser alguém próximo, alguém de confiança para a criança e sua família, como um parente, cuidador ou vizinho, muitas vezes, uma pessoa acima de qualquer suspeita. Essa proximidade e a imagem de “boa pessoa” que o agressor projeta tornam ainda mais difícil para as crianças se defenderem e serem ouvidas, reforçando a necessidade de atenção e cuidado redobrados por parte dos adultos ao redor.

É importante destacar que crianças autistas ou com outras deficiências têm um risco muito maior de serem vítimas de abuso. Li algumas pesquisas que indicam que cerca de 34% a 47% das crianças autistas sofrem algum tipo de abuso ou negligência durante a infância. O número é assustadoramente alto. Além disso, pessoas autistas são três vezes mais propensas a sofrer abuso sexual em comparação com pessoas não autistas. Isso acontece porque, muitas vezes, essas crianças não conseguem comunicar o que sentem ou o que está acontecendo de forma clara.

Decidi contar minha história por um motivo especial: Em 2019 eu conheci uma menininha, que chamarei de Blue para preservar sua identidade. Blue é autista, não verbal e, aos 10 anos, também foi vítima de abuso. Quando vi Blue pela primeira vez e soube de sua história, meu coração se partiu. Senti uma tristeza profunda e vergonha por nunca ter gritado para o mundo o que fizeram comigo, e o que continuam fazendo com outras crianças até hoje. Blue era frágil, e seu olhar doce era muito parecido com o meu olhar em 1977, quando tudo aconteceu comigo.

Quando era mais jovem, vi reportagens que afirmavam que pessoas abusadas na infância poderiam se tornar abusadoras. Na minha ingenuidade, por anos, carreguei esse peso e a culpa de que, por ter sido abusada, eu também era uma abusadora. Isso me perturbou profundamente, até que, já adulta, busquei ajuda com minha patroa, numa empresa ligada ao autismo. Lá, fui acolhida e, pela primeira vez, ouvi que meu desejo de proteger as crianças era legítimo e verdadeiro. Entendi que o que eu sentia era amor e proteção, e não culpa ou maldade. Essa explicação foi um alívio, um peso que finalmente saiu dos meus ombros.

Por isso, hoje, estou aqui contando minha história. Quero que o mundo saiba da realidade das crianças com deficiência, das crianças que não têm voz e que são invisibilizadas. Nós precisamos prestar atenção aos sinais, porque o agressor, muitas vezes, está mais próximo do que imaginamos. O que estou contando é a minha verdade, e eu imploro que escutem as nossas crianças, que não ignorem seus gritos silenciosos.

Querida Blue, eu ouço a sua voz, mesmo que você não fale. E não vou me calar. Nós vamos lutar juntas por um mundo mais seguro para as crianças autistas, para que possam ser vistas, ouvidas e protegidas.

Escrevi esta carta 2 anos atrás.

Blue hoje está com 18 anos e começou a falar.

 

Monique é um nome fictício para proteger a identidade da autora.

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