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A literatura muitas vezes antecipa a vida. Para a escritora carioca Simone Campos, autora de sucessos como A Vez de Morrer e Nada Vai Acontecer com Você, a ficção serviu como espelho para uma revelação pessoal transformadora. Em entrevista recente ao canal Mundo Autista, Simone revelou como a pesquisa para uma personagem a levou ao diagnóstico de autismo. Além disso, ela contou como essa descoberta permeia seu mais recente trabalho, a autoficção Mulher de Pouca Fé.
Quando a personagem revela a autora
Conhecida por transitar habilmente entre o suspense e o drama contemporâneo, Simone contou que a descoberta de sua neurodivergência ocorreu há cerca de cinco anos. E de forma acidental. É que, enquanto escrevia Nada Vai Acontecer com Você, a autora precisou pesquisar o perfil de uma mulher autista adulta para compor uma das personagens da trama.
“As características descritas eram muito parecidas comigo. A descrição da infância dessa mulher era a minha infância“, relatou Simone. Então, o que começou como pesquisa laboratorial transformou-se em uma investigação pessoal. Afinal, após buscar grupos de apoio e passar por avaliações neuropsicológicas, veio a confirmação: autismo nível 1 de suporte aliado à superdotação.
Essa “dupla excepcionalidade”, segundo a autora, permitiu que ela mascarasse seus traços atípicos por anos. Apesar disso, a sensação de inadequação sempre esteve presente.
Mulher de Pouca Fé: A autoficção como expurgo
O diagnóstico lançou nova luz sobre seu projeto seguinte, Mulher de Pouca Fé. A obra, que a autora classificou como autoficção — ficção baseada em fatos reais —, narra a trajetória de uma menina dos 7 aos 17 anos dentro de uma igreja neopentecostal nos anos 90.
Embora o livro não seja estritamente sobre autismo, a condição é o filtro pelo qual a protagonista enxerga o mundo. Simone explica que, inicialmente, o texto não mencionava o espectro, mas editores apontaram lacunas na motivação da personagem. “Tive que colocar o meu autismo na página“, afirmou.
O Conflito e o conforto: Autismo na igreja
Um dos pontos altos da entrevista foi a análise de Simone sobre a relação ambígua entre pessoas autistas e instituições religiosas rígidas. Segundo a escritora, existe um apelo inicial muito forte:
A religião oferece regras claras. Para uma pessoa autista, isso faz o mundo parecer organizado e fácil de lidar. Você tem rituais, rotina e constância. Toda quarta e domingo você sabe o que vai fazer“, explicou. Além disso, a igreja muitas vezes absorve os “talentos” e hiperfocos do autista (como tocar instrumentos ou escrever), oferecendo um senso de pertencimento raro em outros espaços sociais.
No entanto, o conflito é inevitável. A mente autista, frequentemente lógica e questionadora, tende a colidir com dogmas que exigem fé cega. “O autista questiona o ‘porquê’ das regras, e isso não é bem visto por muitas instituições“, pontuou Simone.
Ela relembrou episódios pessoais de sobrecarga sensorial, onde o mal-estar físico causado por música alta ou multidões era interpretado sob uma ótica espiritual, e não neurobiológica. “Eu estava com dor de cabeça e uma obreira colocava a mão com força, orando para tirar a dor, achando que era algo espiritual. Eu só estava tendo uma crise sensorial“, relembrou.
Uma crítica respeitosa, mas firme
Hoje agnóstica — ou “cética aguardando provas”, como prefere —, Simone mantém uma postura crítica, porém nuançada. Seu livro tem sido lido até mesmo por líderes religiosos interessados em entender o fenômeno dos “desigrejados” (pessoas que mantêm a fé, mas rompem com a instituição).
A autora alerta, contudo, para os perigos de certas abordagens teológicas, especialmente aquelas que desencorajam o estudo para mulheres ou que tentam “curar” condições intrínsecas ao ser humano, como o autismo ou a homossexualidade.
“Primeiro precisei ser salva no sentido evangélico, depois precisei ser salva da salvação”, disse Simone, referindo-se à necessidade de libertação intelectual e financeira que a estrutura patriarcal de sua antiga denominação tentava suprimir.
Ao final, Mulher de Pouca Fé e a trajetória de Simone Campos servem como um convite à reflexão sobre como as instituições acolhem — ou sufocam — a diversidade neurocognitiva, propondo que a verdadeira fé não deve temer o questionamento, nem a ciência.
Sophia Mendonça





