1 de setembro de 2020

Tempo de Leitura: 4 minutos

Para aqueles que não sabem, em 2003, foi aprovado o projeto de lei no 10.690/03, que alterou a redação da lei no 8.989/95, para que pessoas dentro do espectro obtivessem direito à isenção da cobrança de Impostos sobre Produtos Industrializados (IPI) na compra de carros populares. Tratando-se de uma ação afirmativa ou de inclusão social, esta isenção poderia reduzir o custo da aquisição do veículo em até 15% do valor de compra. Em 2012, foi aprovado o projeto de lei no 12.764/12, cujo texto estabelece que “a pessoa com transtorno do espectro autista é considerada pessoa com deficiência, para todos os efeitos legais”. Esta equiparação legal lhe garante o direito a outras isenções em impostos estaduais para a compra de veículos. No final, a compra de carros populares pode chegar a ter o valor reduzido em até 25% em certos casos, o que, convenhamos, viria a ser uma “mão na roda”.

Foquemos a atenção agora em janeiro de 2020, antes do Estado de Emergência contra o Coronavírus. O carro da minha família já tem 3 anos e estamos discutindo se o trocamos por um novo, ou se continuamos com o antigo. Fico sabendo que, pela lei, eu tenho o direito à isenção de ICMS (imposto estadual), além do IPI, e a opção de troca do carro se torna bem mais atraente. Neste momento, entretanto, eu e minha família nos sentimos enfrentando um dilema ético: apesar de eu possuir o diagnóstico, nenhum de nós acha que eu necessite de ações afirmativas: eu estou na faculdade prestes a me formar e consigo ser funcionalmente social de forma altamente satisfatória. Há outras pessoas para quem esse tipo de ação faria uma maior diferença. Entretanto, considerando que já passei por situações bem difíceis e debilitantes justamente por estar dentro do espectro, concordamos todos que não seria antiético receber o benefício.

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Para que ocorra a isenção do imposto, é necessário que o usuário entre no site do Sistema de Concessão Eletrônica de Isenção de IPI/IOF, ou SISEN, e submeta o pedido, obedecendo a todos as condições ali requisitadas: identificação do beneficiário, apresentação do laudo no formato requerido pela Receita Federal, CPF de outros motoristas autorizados a dirigir o veículo em questão. Eu submeto o pedido e, dias depois, recebo a resposta: todos as informações dadas por mim foram validadas, e minha condição foi reconhecida pela Receita Federal. Entretanto, meu processo foi indeferido, segundo o seguinte argumento: eu já possuo uma carteira de motorista, logo, aos olhos da Receita Federal, eu não estou apto a receber o benefício, pois não apresento a “necessidade especial” necessária. Naquele momento, em que li esta resposta, veio à minha cabeça uma frase do comediante britânico James Acaster: “Eu nunca me senti tão ofendido por algo com o qual eu concordo cem por cento”.

Após este evento, me bateu uma dúvida: até que ponto uma pessoa com autismo necessita de ações afirmativas, e até que ponto elas são realmente eficazes? Visto que o Transtorno do Espectro Autista é justamente um espectro, há tanto pessoas com um declínio de qualidade de vida mínimo e capacidade funcional praticamente preservada, quanto pessoas em grau altamente severo. Este último grupo obviamente necessita deste incentivo, mas e o outro? Um autista brando que leva uma vida comum sem necessidade de adaptações realmente precisa deste tipo de ajuda?

Muitos de nós necessitamos, ou convivemos com pessoas que necessitam (ou necessitaram), de ações de inclusão para que não deixassem de atingir o seu potencial, tais como as ações de inclusão escolar, e esta é uma política pública que não merece quaisquer desconfianças. Em um Estado Democrático de Direito, uma pessoa tem a prerrogativa de obter todas as ferramentas necessárias para que atinja o seu potencial pessoal, profissional e civil. Uma pessoa com autismo possui direito a um limite maior permitido para o número de sessões de terapia, medicação específica gratuita (incluindo a de alto custo), transporte escolar ou acompanhamento pessoal na escola, professor auxiliar, Benefício de Prestação Continuada (BPC) para autistas de baixa renda, entre muitos outros. Todos estes benefícios e incentivos são muito válidos e necessários. Mas e quanto aos que não necessitam de algum destes benefícios ou mesmo de nenhum destes? Qual é o ponto de corte correto? Também em um Estado Democrático de Direito, os recursos públicos devem ser utilizados de forma racional e eficiente.

Em 1980, a Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou a Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens, ou CIDID. Desde então, esta classificação foi revisada em 1993 (CIDID-2) e, em 2001, substituída pela Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde, ou CIF. Esta classificação permite uma avaliação funcional e sistemática do indivíduo, avaliando até que ponto estão intactas suas funções físicas e cognitivas, sua capacidade de participar em atividades individuais ou coletivas, sua capacidade de adaptação diante da severidade de sua necessidade especial e de certos fatores de risco ambientais, entre outros aspectos. O uso desta ferramenta para o planejamento e execução de políticas públicas para pessoas com autismo permitiria uma aplicação muito mais eficiente dos recursos públicos, não só para a inclusão de pessoas com autismo, mas também para a inclusão de pessoas com quaisquer deficiências, pois classificaria as necessidades especiais em graus de funcionalidade e permitiria ações mais bem mensuradas.

Já havendo, há 40 anos, um instrumento que permita a execução de políticas públicas de inclusão com um caráter mais qualitativo, fica a dúvida: por que a legislação brasileira ainda não faz uso deste instrumento como o faz com o Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde, mais conhecido como “Código Internacional de Doenças” (CID)?

Infelizmente, a resposta para essa pergunta é: burocracia. A OMS possui o que é chamada de “Família de Classificações Internacionais”, que tem como classificações de referência o Código Internacional de Doenças (CID-10), a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), e a Classificação Internacional de Intervenções de Saúde (CIIS). Entretanto, destes, apenas o CID-10 é largamente utilizado, visto o seu caráter codificante e seu histórico, uma vez que ele existe desde o século 19. Já a CIF tem apenas 19 anos, e a CIIS ainda está em fase de desenvolvimento. O ato legislativo e administrativo na esfera pública é algo demorado e não costuma progredir até que todas as circunstâncias estejam solidamente conhecidas, sendo que a aplicação da CIF necessitaria de adaptação para a realidade brasileira e avaliação dos resultados, o que pode levar anos. Além do que, a CIF avalia necessidades especiais em todos os contextos, e não apenas no contexto do autismo. Disso, pode-se inferir que a aplicação do instrumento na esfera pública, em âmbito legislativo e executivo, implicaria em uma revisão de todos os atos públicos referentes a necessidades especiais, o que levaria bastante tempo. 

A sociedade deve cobrar constantemente melhorias como essa, o que também é essencial em um Estado Democrático de Direito. Até lá, ajamos conforme nossa consciência mandar.

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Médico formado pela Universidade Federal de Goiás (UFG), diagnosticado com TEA aos 21 anos e cofundador do podcast Introvertendo.

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