1 de setembro de 2020

Tempo de Leitura: 4 minutos

Nós muitas vezes desconfiamos da ciência porque ouvimos cientistas falando coisas muito diferentes entre si. Isso parece estranho, mas é natural, pois a ciência é um campo em movimento, estamos continuamente produzindo novos conhecimentos e para que isso ocorra é necessário que os cientistas pensem coisas diferentes e explorem todas as possibilidades que se possa imaginar. Fazer ciência é deixar sempre a janela da inovação e exploração aberta.

Mas é normal que muitas coisas investigadas não deem em nada, ou seja, sejam hipóteses falsas, como a ideia de que o autismo era causado pelas “mães geladeira” e, por outro lado, outras coisas ganhem força à medida que as pesquisas avançam, tal como o papel predominante da genética no autismo.

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Quando falamos em intervenções (em saúde, educação ou medicamentos) é preciso ter um cuidado redobrado, pois não podemos submeter as pessoas com TEA a condições degradantes como hipóteses que podem ser equivocadas e perigosas. Daí que só consideremos como um tratamento de verdade aquilo que passou por testes rigorosíssimos de segurança e eficácia. É o que chamamos de “ter evidência”, quando a quantidade e qualidade dos estudos é tão grande que podemos garantir que se trata de algo que funciona. 

Pela legislação brasileira, um remédio só pode ser vendido na farmácia quando passou por tudo isso, do contrário, a venda sem evidência é considerada crime hediondo. No entanto, curiosamente, a oferta de terapias e estratégias pedagógicas sem nenhuma evidência, ou mesmo que haja evidências de que são ineficazes, não possui qualquer proibição legal, fazendo com que proliferem, quando há falta informação de qualidade.

Uma intervenção tem evidência quando há a) estudos randomizados com N adequado à população (esse número varia), com controle de variáveis, duplo ou triplo cego e, a depender do caso, multicêntrico; b) revisões sistemáticas com metodologia rigorosa, incluindo descritores adequados, bases de dados amplas e bem reputadas, com controle de revistas predatórias, consideração das metodologias mais rigorosas adequadas à área; ou c) metanálises com o mesmo rigor descrito para as revisões sistemáticas. Esta é a ordem de força estatística, sendo as revisões sistemáticas e as metanálises, no topo, com maior força em termos de evidência.

Os EUA aprovaram duas leis fundamentais: No Child Left Behind, 2002 e depois o Individuals with Disabilities Education Improvement Act, 2004. Ambas reafirmam que só é permitido usar dinheiro federal se houver evidências de que ele está sendo bem usado, que a intervenção financiada possui evidências de eficácia. Essa legislação lançou os holofotes sobre as pesquisas sobre autismo, que passaram a ter o poder vinculativo de “liberação” de verbas do governo estadunidense.

Foram muitas as revisões sistemáticas – com e sem metanálise –  produzidas no mundo a respeito do autismo. Não falaremos de todas elas, mesmo porque seus resultados são semelhantes, com ligeiras diferenças na forma de abordar as intervenções. Concentraremos nosso foco em somente duas iniciativas: na mais completa, que aborda os tratamentos com evidência, os emergente e os ineficazes – o National Standard Project – NSP, que descreve qual é a melhor intervenção global em autismo e a revisão sistemática do National Clearinghouse on Autism Evidence and Practice Review Team – NCAEP, denominado Evidence-based Practices for Children, Youth and Youg Adults with Autism, que foi publicada em 2020 e tem uma revisão traduzida em português

O National Standard Project

O NSP é um projeto do National Autism Center – NAC, nos Estados Unidos, que tem o objetivo de realizar pesquisa aplicada para o TEA e compartilhar informações com a população, sobretudo pais, professores e terapeutas sobre estes tratamentos. O NSP de 2015 descreveu 14 práticas com evidência para autismo, elas são, em sua maioria, práticas focais, isto é, que têm por objetivo atuar em uma questão específica, mas também trouxe uma prática global, e é esta que iremos apresentar agora:

Intervenção Intensiva e Precoce

Trata-se de um modelo de intervenção que é considerado o tratamento prioritário para o TEA e deve ter algumas características fundamentais: 1. Ser o mais precoce possível 2. Ser intensiva – a intervenção é feita entre 25h e 40h semanais; 3. Ser íntegra – com implementação de maneira rigorosa, com fundamento em Análise do Comportamento Aplicada – ABA; 4. Ser distendida no tempo – com cobertura das pesquisas é de 2 a 3 anos.

O conjunto de dados disponíveis sobre este processo de intervenção demonstrou enormes ganhos nos campos da inteligência, da linguagem, das habilidades sociais e do comportamento adaptativo.

A revisão do NCAEP

Além das intervenções globais, há as intervenções focais, isto é, que se dedicam especificamente a um comportamento que deve ser diminuído, alterado ou aumentado. Essas intervenções focais são, portanto, projetadas para abordar uma única habilidade ou objetivo de um aluno com autismo.

Nesta linha, o National Professional Developmental Center – NPDC realizou uma Revisão Sistemática, publicada como artigo científico em 20153, com financiamento de atualização e que migrou, posteriormente, para o Clearinghouse, dando continuidade ao trabalho e produzindo a publicação de 2020 sobre a qual agora nos debruçamos e que trouxe novas práticas com evidência em relação à pesquisa de 2015, além de um reagrupamento de intervenções.

Foram descritas, neste contexto, 28 práticas focais baseadas em evidências:

  1. Análise de Tarefas 
  2. Atraso de tempo 
  3. Autogerenciamento
  4. Avaliação Funcional do Comportamento
  5. Cognitivo Comportamental/ Estratégias de Instrução
  6. Comunicação Alternativa e Aumentativa
  7. Dicas (Prompting)
  8. Ensino por Tentativas Discretas 
  9. Exercício e Movimento 
  10. Extinção
  11. Instrução Direta
  12. Instrução e Intervenção Assistida por Tecnologia 
  13. Instrução e Intervenção Mediadas por Pares 
  14. Integração Sensorial
  15. Interrupção e Redirecionamento da Resposta 
  16. Intervenção Implementada  por pais
  17. Intervenção Mediada por Música 
  18. Intervenção Momentum Comportamental
  19. Intervenção Naturalística
  20. Intervenções baseadas no antecedente 
  21. Modelação
  22. Narrativas Sociais 
  23. Reforçamento
  24. Reforçamento Diferencial de Alternativo, Incompatível ou Outros Comportamentos
  25. Suportes Visuais 
  26. Treino de Comunicação Funcional 
  27. Treino de Habilidades Sociais
  28. Videomodelação

As práticas estão na ordem alfabética e as que estão em negrito são baseadas em ABA. Nos demais casos, temos a intervenção Cognitivo Comportamental, baseada no cognitivismo, a Integração Sensorial, com referencial próprio e as intervenções de Exercício e Movimento e mediada por tecnologia e música que possuem parte das pesquisas com referencial em ABA, mas também com outros referenciais diversos.

Conclusão

Práticas Baseadas em Evidências são aquelas que acumularam dados para garantir que abandonaram a zona de incerteza e que é possível garantir que realmente funcionam. Existem metodologias rigorosas de pesquisa para que concluamos que alguma prática atingiu este nível e os países desenvolvidos exigem que o dinheiro público seja utilizado com estas metodologias, para segurança das pessoas com autismo e zelo com os impostos. O tratamento para autismo é o que chamamos de “Intervenção Baseada em ABA”e outras intervenções focais, tais como a Terapia Cognitivo Comportamental, a Integração Sensorial e o Exercício Físico são alguns dos elementos também com evidência para contribuir no processo de desenvolvimento das pessoas com autismo.

Lucelmo Lacerda é doutor em educação, com pós-doutorado em psicologia, professor da educação básica e da especialização em ABA do CBI of Miami e em autismo na Universidade Federal de Tocantins, além de autor do livro “Transtorno do Espectro Autista: uma brevíssima introdução”.

Paulo Liberalesso é médico neuropediatra, mestre em neurociências, doutor em distúrbios da comunicação, diretor técnico do Centro de Reabilitação Neuropediátrica do Hospital Menino Deus (Cerena), em Curitiba (PR).

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